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Crítica


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Sinopse

O corpo artístico do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, um dos símbolos culturais do Brasil, se vê paralisado por uma grave crise. Com salários atrasados, sem notícias animadoras no horizonte, bailarinos, cantores, músicos e demais funcionários enfrentam diariamente uma situação triste que diz muito sobre o Brasil de hoje.

Crítica

Ressaca, documentário de Vincent Rimbaux e Patrizia Landi, chega num excelente momento, capturando o desmonte dos aparelhos culturais brasileiros, algo que vem acontecendo de forma sistemática. Com imagens registradas em 2017, o filme fala do então agonizante cenário do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, um dos templos mais importantes da arte tupiniquim, incrustado no coração de uma cidade (e de um Estado) financeiramente falida. Os cerca de 500 funcionários da instituição fazem vaquinha para sobreviver. O atraso dos seus vencimentos coloca em risco o funcionamento do espaço e, por conseguinte, das companhias que lá trabalham. O longa-metragem é dividido em alguns capítulos centralizados nos personagens diretamente afetados por esse descaso estatal que aponta à fragilidade da cultura diante de decisões de gabinete tomadas por profissionais nem sempre capacitados a falar do assunto. E existe um esmero formal para acentuar isso.

Num preto e branco muito bonito, responsável por manter o tom melancólico que condiz com as constatações da câmera, Ressaca passeia pelos bastidores do Theatro, deflagrando a periclitante situação da gente que faz aquele espaço manter-se de pé e conservar a relevância à qual foi erguido. Márcia, a primeira bailarina do corpo de ballet do Municipal, está em processo de despedir-se dos colegas a fim de embarcar à Áustria, onde sua carreira provavelmente não será bruscamente interrompida em virtude da falta de recursos materiais ou da indiferença quanto ao seu talento maiúsculo. Adiante, o breve plano da fachada da companhia estatal austríaca que a contrata aponta à discrepância do tratamento dispensado à arte. O filme, aliás, possui vários momentos em que a desesperança desprendida dos exemplos humanos afetados diretamente pelo descaso do poder público atinge níveis sufocantes. É duro testemunhar artistas valorosos mal tendo comida nas mesas.

Em diversos instantes, Ressaca aborda esses personagens num jogo de cena híbrido, no qual a realidade é fabulada. Isso funciona orgânica e discretamente na maior parte do tempo, mas nem tanto ocasionalmente, como na cena do jovem segurança do Theatro Municipal atônito diante das notícias sobre o incêndio que destruiu uma parcela significativa do Museu Nacional, também no Rio de Janeiro. Essa tentativa de abarcar outros casos que corroboram a tese do sucateamento atrelado à conduta dos governos soa quase desnecessária, pois o modo como Vincent Rimbaux e Patrizia Landi esquadrinham os personagens do Municipal é mais que suficiente para o pleno entendimento da conjuntura que, por certo, afeta violentamente outros aparelhos culturais. Ao deter-se na trajetória de Filipe, o primeiro bailarino que precisa completar o orçamento doméstico como motorista urbano, os cineastas expõem ainda mais os efeitos dessa desvalorização da arte.


Os modelos de resistência apresentados são comoventes. A peça que ocupa o Theatro em virtude da abnegação dos funcionários que trabalham sem receber; o protesto artístico nas ruas do Rio de Janeiro; o corpo a corpo com a população na tentativa de sensibiliza-la quanto à importância de uma história prestes a se perder; o testemunho da rotina de gente que devotou décadas de préstimos à instituição. São alguns indícios capitais numa trama bem urdida e, embora dotada de clímaces além do necessário – simplesmente pelo fato destes reiterarem circunstâncias outrora postas de jeitos similares –, que aponta a uma degradação dolorosa por tudo que esta representa. O movimento precedido de bastante treino, intensidade e tenacidade, o amor do funcionário octogenário que não se vê longe daquele espaço de sonhos, a intimidade sendo atravessada pelos estilhaços da ingerência política, tudo isso está nesse bonito, por vezes lancinante, documentário brasileiro.

(Filme assistido durante a 29ª edição do Cine Ceará)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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