Crítica
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Sinopse
Ma é um reticente agricultor que vive numa vila rural chinesa. Guiying é deficiente e mora na mesma localidade. O casamento arranjado entre eles parece destinado a piorar as coisas. Mas, os dois descobrem algo em comum.
Crítica
Youtie Ma (Wu Renlin) é um herói raro no cinema contemporâneo. Trata-se de um agricultor gentil, cuidadoso e inerentemente bom. Quando se descobre que é o único do vilarejo miserável a possuir o tipo sanguíneo necessário à transfusão do chefe avarento, que não paga o salário dos funcionários há meses, o lavrador possui uma vantagem em mãos. No entanto, jamais a utiliza: ele fornece o sangue com frequência, e apenas solicita ao empresário que se lembre dos pagamentos na próxima vez. Na hora de receber o ínfimo salário, pede que deduzam uma parcela em função de um casaco emprestado na noite de frio. Ele se casa com Guiying Cao (Hai Qing), igualmente virtuosa e dedicada, que nunca reclama do fardo no campo, nem das humilhações dos familiares. Ela é deficiente e perdeu o controle da bexiga, o que provoca cenas constrangedoras de incontinência dentro dos carros e casas alheias. Ninguém desejava passar o resto da vida ao longo de Guiying, operária de certa idade, considerada um fardo aos parentes, e tampouco desejava se unir a Youtie Ma, sujeito bruto, de poucas palavras. Juntos, eles promovem um casamento dos marginais, uma união sólida dos rejeitados da sociedade. “Ficar preso no solo é sofrer”, comenta a esposa, que acrescenta: “Este jumento tem a vida melhor do que a que eu tive”.
Os méritos ou deméritos da obra chinesa dependem da avaliação desta postura política. O drama se move inteiramente a partir destes personagens, que dominam as cenas em longas sequências de trabalho forçado, descaso dos patrões e desprezo dos vizinhos. O cineasta Li Ruijun acredita oferecer uma bela história de amor e resiliência, movida por indivíduos ainda melhores por serem pobres. É comovente assistir à trajetória de ambos tentando salvar, em meio à tempestade, os tijolos de barro recém-construídos (pois a antiga casa foi demolida, sem despertar reclamações); ou então saindo da casa da vizinha com vergonha, visto que a esposa urinou na cadeira alheia. Ao visitarem contra a vontade um apartamento na cidade, despertam risos de escárnio com a pergunta “Mas onde vão ficar meu jumento e minhas galinhas?”. O cineasta encontra nobreza na ignorância, ou ainda melhor, no sofrimento. Em perspectiva próxima da religiosidade, estima que a dor purifica o homem, e que nossos ídolos deveriam ser os sujeitos enxotados da sociedade, em oposição aos patrões corrompidos pela ganância. Durante a demolição do vilarejo onde sempre viveu, Youtie Ma tenta salvar um ninho de pássaros, e pede que o trator espere alguns dias antes de destruir o local, para que os ovos choquem. Novamente, é recebido com deboche.
Esta pureza se traduz numa conformidade bastante incômoda. O longa-metragem pretende elogiar a brava gente do campo, resistente a todas as adversidades e desprovida de consciência de classe. Neste processo, a dupla central acata os insultos e injustiças, oferecendo estoicamente a outra face aos agressores. Não estamos distantes de uma peça de propaganda estatal chinesa, do tipo que elogia seus cidadãos comportados, incapazes de exigir seus direitos contra o empregador. Li Ruijun filma longuíssimas cenas onde os dois atores aparentam efetuar trabalho pesado de fato, diante do plano aberto e contínuo. Acompanhamos a construção da nova casa passo a passo, do chão ao teto, com riqueza de detalhes — até receberem um novo golpe do destino. A voz dos camponeses nunca se enraivece: eles apenas seguem em frente. A morte desponta como único horizonte possível, seja pela falta de empatia da sociedade, seja pelo título que anuncia o “retorno ao pó”. Assim, os protagonistas de pouquíssimas palavras rompem com o silêncio para tecer elogios ao ofício essencial da agricultura, que nos fornece todos os alimentos de que precisamos. “O solo não nos despreza. Como podemos desprezá-lo?”, afirma um diálogo. Embora os demais habitantes usem tratores e ofereçam alternativas modernas de transporte para substituir o jumento velho, nossos heróis resistem, e permanecem felizes, lavrando o solo com seu próprio esforço. Eles são, em sua essência, reacionários.
Return to Dust possui imagens belíssimas, além de um senso de observação exemplar. O jovem diretor, de carreira prolífica, conseguiu reunir uma dezena de produtoras para sua ode ao pobre lavrador (ou seria à pobreza do lavrador?). Cada cômodo humilde ostenta um cuidado precioso de iluminação e enquadramento, evitando se aproximar em excesso dos rostos e corpos convalescentes. Este distanciamento evita sublinhar reações e gestos claros por si próprios. Wu Renlin e Hai Qing desempenham seus papéis com naturalidade, através de certa introversão percebida como respeito e pudor. As ações de preparar o solo e erguer uma casa soam tão corriqueiras, para a dupla, quanto atraentes aos olhos da direção de fotografia. Estes heróis sem malícia são impossibilitados de controlar o próprio destino, sendo dominados por ele — mas tamanha submissão consiste em sua principal virtude, de acordo com o filme. Em alguns casos, a plasticidade excessiva (as cores saturadas, a iluminação impecável) prejudica a representação da miséria, por atenuá-la, torná-la palatável à sensibilidade dos espectadores burgueses na sala de cinema. Este seria o belo sofrimento, em oposição a um sofrimento ruim. Enquanto produto de exportação, o drama concebe uma China resistente e satisfeita com o regime onde se encontra. Os verdadeiros heróis, para Li Ruijun, são aqueles que não se insurgem jamais.
Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.
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