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Sinopse

Um novo olhar sobre a representatividade de transexuais no cinema e na televisão dos Estados Unidos, com um empenho especial para entender Hollywood dentro de uma equação em constante mutação.

Crítica

Pense bem: quantos filmes estrelados por atores e atrizes transexuais vocês já viu? Quantos eram dirigidos por pessoas trans, e quantos tinham transexuais ocupando a maioria dos papéis? A resposta dificilmente atingirá um número alto. Revelação (2020) nasce da intenção de dar voz a indivíduos invisibilizados enquanto cidadãos e enquanto profissionais. Ele parte de uma sensação mista de alegria e tristeza: por um lado, comemora os passos importantíssimos efetuados por atrizes como Laverne Cox, Alexandra Billings e Marquise Vilson. Por outro lado, sublinha que estes esforços ainda são mínimos dentro de um cenário repleto de desinformação, desinteresse e desrespeito. Apesar da estrutura convencional, o projeto dirigido pelo cineasta Sam Feder, um homem transexual, está repleto de sentimentos fortes em cada entrevista. Há uma sensação de euforia ao comentar os papéis complexos reservados a pessoas trans, seguidos pela decepção de perceber que ainda são raríssimos na indústria. Comemora-se a chegada de novos atores trans enquanto se repudia o preconceito vigente em Hollywood e nas séries de televisão.

Podemos falar então num projeto de “primeiros passos”, no sentido de introduzir um tema e uma discussão que já deveriam ser comuns há muito tempo. Por isso, o teor didático se dilui na impressão de necessidade. A crítica de cinema reclama quando a biografia de algum cantor famoso, por exemplo, adota uma estrutura linear demais, porém quando aborda pessoas de quem ninguém fala, a apresentação lenta e detalhada se faz importante. Estamos, portanto, num passo anterior àquele dos filmes que divulgam temas e histórias conhecidos. A linguagem é adequada ao discurso político em questão: para as dezenas de atores deliberadamente ocultados da mídia, e para os filmes grosseiramente transfóbicos interpretados durante tanto tempo como “naturais”, o simples fato de se colocar esses indivíduos em posição de protagonismo, e se propor uma releitura histórica das imagens constitui um gesto de ressignificação. O filme investe com vigor na disputa de narrativas dos tempos contemporâneos: para quem ainda associa a transexualidade a doenças, perversões, fingimento ou dissimulação de caráter, a narrativa se atarda sobre cada argumento, contrastando os indivíduos com sua representação em imagens.

Em última instância, associa-se a imagem do cinema com aquela feita pelo imaginário coletivo: os indivíduos trans têm sido reduzidos às criações de terceiros, razão pela qual Revelação concentra-se nos preconceitos, fobias e distorções de conteúdo. No momento em que diversas nações sofrem uma guinada à (extrema-) direita, como o Brasil e os Estados Unidos, a importância de desconstruir o inconsciente coletivo fetichista se faz ainda maior. Através de uma montagem fluida, evitando tanto a orquestração por blocos quanto a divisão de capítulos, as conversas passam naturalmente por temas como a patologização da transexualidade, a obsessão popular pela genitália de indivíduos trans, a transformação do trans em alívio cômico, a limitação das personagens trans a prostitutas e assassinas, o final trágico da maioria de personagens trans, a exclusão mesmo dentro da comunidade LGBT, a distorção dos ideias de feminilidade numa sociedade de consumo, o preconceito das feministas radicais contra mulheres transexuais etc. Há certo distanciamento dos atores, atrizes, diretores e militantes entrevistados ao debater estas questões, sinal de que já passaram por tanta violência psicológica que se tornam capazes de narrar os abusos com franqueza, e mesmo bom humor. As entrevistas ocorrem em evidente local de conforto e segurança, onde as pessoas compartilham experiências em tom amigável. O furor das denúncias panfletárias é substituído pelo bem-vindo tom de bate-papo entre amigos, razão pela qual a presença de um diretor transexual se torna fundamental.

Outras escolhas estéticas possuem efeito interessante: os depoimentos são captados dentro de quartos claros, com cortinas e tapetes brancos, transparecendo a ideia de conforto e de igualdade – todos falam da mesma posição, sem hierarquias. O teor caseiro favorece a identificação do público cisgênero, capaz de se projetar mais facilmente naquele cenário e se enxergar nas histórias sobre conflitos com os pais e sobre dificuldade de inserção no mercado profissional. O material de arquivo, muito bem selecionado e tratado em pós-produção, articula-se de maneira frutífera com as falas. Ao invés de se limitar à repetição entre som e imagem, os trechos de filmes transfóbicos servem, em partes, como ilustração (e prova de veracidade, importante para indivíduos tão comumente desacreditados), em parte, como fricção, quando trazem um conteúdo destoante das falas. O som das entrevistas e dos filmes recebe uma edição clara, sinal de um projeto bem produzido. Ao invés de buscar uma estética marginal, o filme insere ideias politicamente assertivas dentro de uma embalagem palatável, agradável de assistir. O ritmo jamais se arrasta ao longo de 100 minutos, sinal de uma argumentação desenvolta e rica em temas.

Estas escolhas não significam que Revelação seja feito para o público cisgênero, mas também para ele. O diretor visa tanto fortalecer a comunidade trans pela representatividade – reforçando a importância para qualquer pessoa de encontrar imagens que validem sua identidade – quanto confrontar o status quo reacionário ou apenas conformista. Contra a cultura do cancelamento, demonstra um olhar acolhedor a pessoas que já emitiram frases preconceituosas, mas aprenderam ao longo os anos (com exemplo notável de Oprah Winfrey). Isso significa que o discurso consegue combinar denúncia e otimismo, acreditando em três possibilidades graduais de educação: das sociedades para acolherem indivíduos trans; das produções de cinema para os receberem em papéis diversificados (mesmo de pessoas cis); e dos agentes formadores de opinião para não falarem em nomes de pessoas trans. Talvez o resultado pudesse ser mais enérgico, nomeando personalidades transfóbicas específicas e mostrando mais cenas com pessoas trans atuando. Mesmo assim, ele cuida para que seus personagens representem diferentes etnias, classes sociais, gerações e orientações sexuais. O filme parte de alguns preconceitos mais disseminados até chegar em ideias interessantíssimas, como a associação entre o corte da montagem e a castração (simbólica e efetiva) imposta a pessoas trans. O projeto não apenas efetua um notável primeiro passo, como vai muito além na discussão.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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