Crítica


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Sinopse

Tiago vive com dificuldades financeiras e dor crônica nas costas. Sua rotina se transforma quando uma mulher desconhecida o aborda, afirmando ser sua irmã. Tiago nunca conheceu o pai, e de repente, descobre ter uma família de classe média-alta em outra parte da cidade.

Crítica

A vida de Tiago (Okado do Canal) tendia a continuar entre os pequenos trabalhos mal pagos, os encontros esporádicos com a mãe e as reclamações da antiga companheira, pedindo maior atenção com a filha do casal. No entanto, este é o tipo de filme no qual o conflito vem de fora, ao invés de dentro do protagonista: uma mulher desconhecida informa Tiago sobre a identidade do pai dele, que teria acabado de morrer. O rapaz nunca soube quem foi este homem, e agora descobre ter irmãs de classe social diferente da sua - enquanto ele vive no Rio Doce, em dificuldade financeira, elas ocupam um bairro nobre de Recife. O destino bate à porta, abrindo a Caixa de Pandora e obrigando o herói a lidar com questões reprimidas. Agora, o sujeito de temperamento passivo é obrigado a se confrontar com a possível herança e às questões de paternidade - relacionadas tanto ao pai quanto à filha pequena. O roteiro, generoso, resolve lhe dar um pontapé para lançá-lo à perspectiva de mudanças positivas. Alguns filmes apresentam protagonistas em vida estável, introduzindo cenários de crise para vê-los reagir. Rio Doce (2021) segue pelo caminho contrário, partindo da dificuldade crônica para desenhar um horizonte de melhoria. O otimismo se encontra na raiz do projeto.

Um dos aspectos mais agradáveis do longa-metragem reside no tratamento naturalista do elenco e dos espaços. É possível acreditar em todas as interações do rapaz com os demais personagens através das falas de aparência espontânea, carregando os tiques, repetições e hesitações típicos da linguagem oral. A festa de família, com salgadinhos e refrigerantes à mesa, e a casa de uma vizinha com a televisão ligada num programa evangélico e o aquário iluminado ao lado despertam a sensação de familiaridade, além de construírem um imaginário verossímil de classe média-baixa. O roteiro não precisa avisar pelos diálogos que Tiago sofre com problemas financeiros: basta vê-lo pedindo à vizinha para carregar o celular na casa dela, visto que teve a eletricidade cortada por falta de pagamento. O filme permite interações inconsequentes com amigos numa loja, em cenas de um despojamento exemplar - vide a mãe aguardando o filho pequeno, que brinca na quadra do bairro com os amigos. O principal talento apresentado pelo cineasta Fellipe Fernandes, em seu primeiro longa-metragem, diz respeito à qualidade de cronista: ele consegue reproduzir pequenezas tão tipicamente brasileiras e urbanas, algo que projetos utilitaristas são incapazes de incorporar.

Em paralelo, o autor foge ao risco de converter sua narrativa numa telenovela, algo que teria sido natural à separação em núcleos de classes sociais distintas, à descoberta de irmãs ricas e aos eventuais alívios cômicos através de coadjuvantes. Felizmente, ele evita fazer com que o rapaz ambicione a fortuna do pai morto, brigue de modo explícito com as irmãs e tire qualquer proveito da situação. Pelo contrário, são elas que insistem no teste de DNA e nos pedidos de registro de paternidade. Tiago consente, como de costume: o herói constitui o núcleo em torno do qual os conflitos acontecem, porém ele mesmo não desencadeia qualquer movimento em avante. O roteiro também ousa incluir um retrato da dor física, no caso, a dor nas costas que incomoda o jovem - sem impulsioná-lo a buscar um médico, claro. São raras no cinema as imagens de dores físicas sem a exteriorização em fraturas, sangue e cirurgias. O recurso é discreto dentro da trama, porém comprova a ousadia do cineasta em enfrentar a representação de elementos não-imagéticos por natureza. A lombalgia funciona como analogia à latência paterna pressionando o protagonista, na forma de um estímulo suplementar em sua busca por novos rumos. Todas as transformações na vida do homem são simultâneas e interligadas, num movimento único.

No entanto, Rio Doce incomoda pelo aspecto lacônico em excesso - ou seja, pelo impacto ínfimo das descobertas. Okado do Canal, rapper cuja música é apresentada durante os letreiros finais, efetua um trabalho desafetado ao limite da apatia: ele tem dificuldade de imprimir variações de tom e intenção, nuances na fala e no olhar. Ao lado de nomes fortes como Nash Laila, acaba fagocitado pelos coadjuvantes. Tiago representa um herói morno, de ambições modestas. Sua minúscula evolução interna, acelerada rumo ao final, instaura-se sem real contemplação das dúvidas e angústias do rapaz, convertido num corpo em deambulação, flutuando de um polo a outro conforme as demandas alheias. Este naturalismo bruto, avesso à psicologia dos personagens ou às ilustrações metafóricas, necessitaria de um trabalho mais complexo e diversificado de composição de personagens. Além disso, o encontro com a irmã numa festa soa conveniente e artificial, e os inserts bruscos de fotografias still não favorecem nem o ritmo, nem a descrição dos estados de espírito, resultando em ruídos incapazes de subverter a linearidade da trama.

Por fim, o projeto crê no testemunho do instante enquanto valor máximo: privilegia-se o estar presente, o rosto bruto, o gesto mínimo em cena. Trata-se de um filme avesso às revoluções, preferindo construir um desenvolvimento gradual. Em contrapartida, o resultado carece de cenas fortes, ousadas ou inesperadas, para romper com a placidez do conjunto. O realismo tão literal, convertido em meio e finalidade, esgota as potencialidades da representação - termina-se por apreciar o gesto e a capacidade de se colar ao real, ao invés da adequação da forma ao tema específico. Fernandes atinge uma forma polida e coesa de mise en scène, ainda que faltem vigor e tomada de riscos. Ressalvas à parte, a imagem respeitosa de pessoas negras e de divergências políticas revela um diretor capaz de voos mais altos em iniciativas futuras. O teor tão acessível quanto preocupado com dilemas sociais e políticos aponta para a notável capacidade de navegar pelo terreno dos filmes acessíveis ao público médio e relevantes à crítica especializada - em sua modéstia, o resultado lembra algumas interações de Que Horas Ela Volta? (2015) e Como Nossos Pais (2017), dois belos exemplares desta forma de cinema médio e politicamente consciente.

Filme visto online no 10º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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