20140910 poster6 e1410378351468

Crítica

A natureza não é cruel, apenas implacavelmente indiferente. A afirmação é do biólogo e escritor americano Richard Dawkins, mas me veio à mente ao rever Rio Violento, o clássico de Elia Kazan.

Na abertura, cenas em preto e branco do Rio Tennessee impressionam e tomam conta da tela. Logo depois, corta para o depoimento de um pai dando testemunho à câmera. Os três filhos foram levados pela correnteza de forma impiedosa. O que teria feito ele para merecer isso é a pergunta errada, diria Dawkins. A correta é o que podemos fazer para evitar isso. O início trágico é o trampolim para a história que veremos em seguida.

 

Montgomery Clift é Chuck Glover, o agente enviado pelo governo norte-americano para convencer os moradores de uma ilha junto ao Rio Tennessee a deixarem o local em que será construída uma barragem. Vestindo terno e gravata, Glover é o espectador mediano americano convocado a se deparar com uma parte mítica e desconhecida do próprio país, território em que as certezas não obedecem razão ou méritos, mas a dignidade e os costumes; em que o progresso é a mais pura forma de agressão.

Ambientado no sul dos Estados Unidos durante o período de Depressão, Rio Violento é o resultado do roteiro consistente de Paul Osborn com a direção de atores costumeiramente imponente de Kazan. Escrito a partir dos textos de Borden Deal e William Bradford Huie, o drama costura-se em duas esferas. A primeira envolve o embate político e social de Glover com a matriarca da família, Ella Garth (Jo Van Fleet). Reticente a deixar o local, a personagem de Fleet é o símbolo de um passado que luta para não ser devorado pela modernização. Como será expresso adiante no filme: não há o que se possa fazer a quem não aceita se adaptar. Cedo ou tarde Ella deverá passar. A segunda esfera diz respeito ao relacionamento que se constrói entre o personagem de Clift e a neta de Ella, Carol (Lee Remick). Viúva, mãe de crianças e prestes a se casar com um homem por quem não está apaixonada, a mulher representa um avanço no diálogo e nas possibilidades em relação às demais gerações da região.

Poucos diretores conseguiram extrair dos atores expressividade tal e trabalhar os sentimentos em situações extremas como Kazan o fez. A experiência no teatro certamente o ajudou a elaborar e construir com consistência a carga dramática dos personagens. Nada decepciona mais do que perceber o ruído entre a fala e a reação de um ator. A arte não se permite apenas a superfície. Neste sentido, Rio Violento captura com profundidade a sinceridade de Glove e Garth no que há de mais ambíguo. Frente a frente, seja na fantástica cena em que Clift chega ao rancho pela primeira vez, esvaziando a varanda da casa, seja em qualquer um dos vários embates que manterão, sentiremos a impotência da verdade frente aos sentimentos. Sabemos serem verdadeiras as boas intenções de Chuck, ao pretender retirar a família antes da inundação da área. Entretanto, igualmente verdadeiras são as razões de Ella para permanecer no local em que se encontra, único ponto da terra em que a sua vida faz sentido. O problema de um sentimento – ou a virtude – é não ser passível de refutação.

Impressionado pelas locações disponíveis, o diretor faz com que a câmera se movimente mais do que o de costume. Os planos abertos exploram o espaço natural e imprimem no filme o lado selvagem da terra esquecida. O espaço imaginário do sul, reforçado sempre que possível, tornou a obra de Kazan um marco cultural, reconhecida e preservada pela Biblioteca do Congresso americano. Autêntico, forte e delicado, Rio Violento é o registro de um país construído na diferença das pessoas. Um país que não esquecera quem fora, mas não sabia quem viria a ser.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *