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Crítica


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Sinopse

Após tomar posse da propriedade de sua mãe na zona rural do México, Isabel se reconecta com Mari, empregada de longa data de sua família. A irmã de Mari desapareceu e Isabel terá de ajudá-la nesse processo de busca.

Crítica

Há muitas ações acontecendo ao mesmo tempo em Robe of Gems (2022). As cenas estão repletas de pessoas que conversam sem parar, andam à direita e à esquerda, entram e saem do enquadramento. Enquanto a mulher cega nada sozinha num primeiro nível da imagem, um grupo de crianças brinca na piscina ao fundo, e mães gritam com os filhos fora de quadro. Na hora de cortar o bolo de aniversário, os pequenos pedem doce num canto, idosos solicitam ajuda no outro, a mãe grita pela presença da filha ao centro, e alguém toca a campainha num ponto distante. Há pelo menos 20 personagens de destaque nesta narrativa, sem ordem de importância. O espectador mal tem tempo de se acostumar com uma figura, e descobrir sua relação profissional ou familiar com as demais, para descobrir a chegada de um novo participante a assimilar. Todos eles têm falas, ações, temperamentos e objetivos distintos. Teria sido fácil organizá-los em grupos e oferecer algum tipo de apresentação antes de iniciar os dilemas. Ora, a cineasta Natalia López Gallardo não tem qualquer pretensão de facilitar a tarefa do espectador. Descobrimos as intenções quando já se encontram em andamento: percebemos um sequestro, uma humilhação e um gesto de violência apenas na hora em que ocorrem diante de nossos olhos surpresos.

Diversos filmes de estrutura acadêmica são questionados por situarem seus protagonistas num mundo-bolha, sem sons ao redor, nem problemas autônomos fornecidos aos coadjuvantes. O drama mexicano-argentino-norte-americano soluciona esta questão apelando à saturação oposta. É difícil saber onde repousar o olhar, ou por quem temer, torcer, com quem se identificar. Chegando numa delegacia, a câmera navega por todos os rostos, corpos, pernas e mãos presentes, manifestando uma curiosidade infinita. A montagem se equilibra como pode entre os inúmeros núcleos narrativos, passando alguns minutos com cada familiar. Assim, a diretora privilegia a noção de um panorama social, ao invés da trajetória específica de um indivíduo. A priori, pode-se dizer que o longa-metragem não acompanha a jornada de ninguém, privilegiando o retrato da burguesia prepotente, da violência física e emocional sofrida pelas classes populares, da corrupção da polícia e do sistema judiciário. Os enquadramentos são bem compostos, elegantes, e sempre dispostos a efetuar um zoom ou um movimento panorâmico na intenção de captar algo além. Cria-se um ponto de vista externo, evitando se identificar com algum personagem em particular, podendo assim julgá-los com distanciamento. Este posicionamento reforça a aparência de um filme frio, implacável na representação de uma violência que parece não comovê-lo, apenas interessá-lo esteticamente (vide a fogueira ao final).

Em paralelo, o clima de ameaças e provocações prepara o espectador a um espetáculo de carnificina que nunca virá por completo — para o bem e par ao mal, diga-se. Por um lado, a cineasta evita se divertir com as dores alheias e transformá-las em espetáculo: a humilhação envolvendo nudez ocorre em planos distantes; os cadáveres têm seus rostos e ferimentos escondidos; as pessoas sequestradas possuem exposição moderada. Por outro lado, ao menos a catarse poderia oferecer alguma forma de recompensa emocional ao espectador. Gestos brutais afetam corpos anônimos (quem seria a vítima?), e grandes dores envolvem filhas e vizinhos de que nunca tínhamos ouvido falar. Como nos importar pelo trauma de figuras que mal conhecemos, chorando a tristeza de perderem a filha que nunca foi apresentada, ou sequer mencionada ao espectador? A perversidade do sistema se propaga sozinha, sem donos nem responsáveis — impossível apontar um vilão ou mocinho neste contexto. Esta galeria de figuras amargas pode ser lida positivamente enquanto denúncia de um sistema de desumanização (provocada pela desigualdade social, pelas máfias e milícias), ou percebida negativamente como desumanizando indivíduos em situação de sofrimento. A diretora estaria chamando atenção à miséria, ou sendo conivente com a mesma? O problema dos mosaicos alarmistas, onde ninguém sai ileso, reside na impressão de conformidade com o mecanismo vicioso — Gallardo evita procurar causas ou apontar possíveis saídas a este funcionamento crônico.

A narrativa se encerra quando estamos, enfim, começando a conhecer melhor cada membro da família. Manto de Gemas, no original, proporciona uma experiência hermética, e demonstra orgulho desta configuração — o próprio título se justificaria apenas numa leitura metafórica, cabendo ao espectador juntar as peças necessárias à interpretação. A diretora domina cenas com atividades simultâneas, e demonstra talento notável para ocupar diferentes partes ou profundidades do enquadramento. Ela possui um refinamento visual impressionante, que não necessariamente se traduz numa narrativa coesa, empática ou complexa em termos de debate. Além disso, percebe-se o legado de O Pântano (2001), de Lucrecia Martel, sobre a obra. O drama da cineasta argentina definiu uma geração ao canalizar uma série de anseios políticos, sociais e estéticos, tornando-se um faro rumo ao qual diversos cineastas estreantes apontam. A mise en scène ocupada, as jovens boiando na piscina e a decadência da Casa Grande senhorial, face ao cansaço dos empregados, decorre de uma estética da perversidade bem desenvolvida por Martel. Talvez Gallardo seja mais cruel e obtusa em sua comunicação com o espectador. Ela reconhece as possibilidades de luz, cor, sombra, som e montagem, mas por enquanto, a pretensão de uma autoria ostensiva ainda se sobrepõe ao conteúdo veiculado. Resta esperar com interesse pelo próximo trabalho, quando um nivelamento dos dois aspectos poderia resultar numa verdadeira obra-prima.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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