Sinopse
Três pessoas vivem processos transitórios. Tatiane perambula pelo Brasil profundo em busca de algo para se apegar; Odair está querendo uma rotina nova longe da família; e Henry é um imigrante haitiano que deseja apenas um lugar digno para prosperar com sua família.
Crítica
Um grande desafio do cinema é transformar sensações em imagens. Produções orientadas estritamente por uma preocupação comercial (mas não apenas elas) frequentemente sequer encaram essa tarefa que requer talento. Então, elas simplificam as coisas ao converter elementos abstratos e subjetividades em palavras. Desse modo, são abundantes os casos de personagens dissecando sentimentos. Também são corriqueiras as famigeradas figuras de apoio que traduzem cenários, novidades e complexidades em solilóquios ou diálogos meramente expositivos. A intenção dessa facilidade é deixar confortável o espectador menos disposto a um mergulho nas sugestões e sutilezas. Claro que nem todo diálogo precisa ser assim, pois os bons texto carregam entrelinhas, não ditos eloquentes e uma série de outras delicadezas. Porém, a regra do que chega diariamente aos cinemas, streaming, VoD e outras plataformas de home vídeo é essa investigação detalhada para não restarem dúvidas. Rodantes felizmente não segue essa estrada, pecando em aspectos diferentes, mas não por abraçar a necessidade de confortar a plateia com histórias destrinchadas. Desde o princípio, o cineasta Leandro Lara demonstra vontade de justamente fazer emoções transbordarem das imagens, dos gestos, das pausas entre uma manifestação verbal e outra. É cinema que nos convida a uma experiência mais profunda.
Leandro faz com Rodantes o seu primeiro longa-metragem de ficção. E essa inexperiência fica evidente não pelo conceito, mas por aspectos da execução. Na fase de apresentação, é asfixiante o acúmulo de expedientes para tentar evitar esse ilustrativo. A intenção é ótima, mas sua concretização deixa a desejar. Encarando bravamente o desafio de transformar sensações em imagens, o realizador enquadra incessantemente os protagonistas como se quisesse extrair de quietudes e olhares vagos ao horizonte um acesso privilegiado. Há abundância de contraluzes, de gente emoldurada por janelas e outras aberturas que formam quadros dentro do quadro e de raios de sol inundando o plano para lhe dar uma aura etérea. Tatiane (Caroline Abras), jovem viajando de ônibus com a amiga, é contextualizada no primeiro terço do filme por meio dessas premissas que incluem sombras milimetricamente projetadas para convocar a melancolia e silhuetas recortadas pelo sol alaranjado ao fundo. Odair (Jonathan Well) sai da penumbra, da comunidade ribeirinha que não mais comporta seus anseios de vivenciar, inclusive, a sua sexualidade. Aliás, a cena dele se cortando ao ouvir um familiar recriminando homossexuais sugere o medo. Henry (Félix Smith), imigrante haitiano que tenta a vida no Brasil, é jogado num ambiente barrento, igualmente retratado com reiterativas elucubrações visuais.
Portanto, de um lado, temos o bem-vindo ímpeto do cineasta de não esmiuçar o que Tatiane, Odair e Henry experimentam. Mas, do outro, há a overdose de procedimentos que em alguns instantes criam atmosferas postiças. Há sequências em que a marcação dos atores transparece em meio à concepção dos planos engessados pelo princípio estético. Por mais que a câmera passeie aparentemente de modo livre pelos cenários do Brasil profundo, a necessidade de conseguir a composição ideal para expressar determinada sensação acaba se impondo como dado sufocante, haja vista a insistência e a reiteração sem variações. Com o passar do tempo, isso vai sendo levemente aliviado, curiosamente à medida que Leandro se desapega da equivalência entre os protagonistas. Sim, pois Rodantes se empenha em construir um mosaico sintomático a partir das vivências, expectativas e passados heterogêneos. Contudo, antes do longa-metragem chegar à sua metade a personagem de Caroline Abras ganha um espaço desproporcional. Essa reconfiguração transforma os itinerários dos outros dois em apêndices cujas funções são reforçar os assuntos debatidos em torno dela. As perambulações da mulher que se prostitui na beira da estrada, bem como em cada curtíssima paragem, se torna central, enquanto a permanência de Odair no emprego e a desgraça de Henry são preteridos e viram periféricos.
Rodantes é sobre pessoas em trânsito que não encontraram um lugar para fincar raízes. Em certo sentido, pode ser entendido como um road movie existencial que subverte determinados preceitos desse tipo de narrativa. Ele não assinala promessas de transformações pelo caminho ou mesmo de recompensas no destino. Os três protagonistas sequer têm destinos previstos. Enquanto avança, a produção investe na exasperação, dado principalmente suscitado pela desterritorialização. Os personagens continuam, mas parece que nunca saem do lugar. Leandro Lara torna difusos o espaço e o tempo, evitando assinalar quantos dias se passaram desde os começos das jornadas convergentes, se geograficamente estão todos próximos ou se a noção de comunhão é somente espiritual. Com bem mais tempo de tela, Caroline Abras sobressai com sua composição introspectiva da jovem que parece desorientada, angustiada e furiosa proporcionalmente. Seu corpo vira um território insistentemente investigado pela câmera. Vemos sua carcaça cansada sendo agredida no sexo e em instantes de paz excepcional. Até o ato de se agachar para urinar à beira do caminho é acompanhado atentamente pelo dispositivo que revela parcialmente sua nudez. Já Jonathan Well e Félix Smith, de estruturas físicas bem menos escrutinadas, fazem o que podem diante da crescente subalternização de seus homens igualmente exasperados por circunstâncias e agentes diferentes. Um filme impetuoso, mas irregular.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 6 |
Chico Fireman | 4 |
Alysson Oliveira | 6 |
Lucas Salgado | 6 |
Francisco Carbone | 5 |
Sarah Lyra | 8 |
MÉDIA | 5.8 |
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