Crítica


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Sinopse

Os chamados rolezinhos marcaram o Brasil na década de 2010. A presença massiva de jovens negros periféricos ocupando shopping centers urbanos trouxe novamente à tona a discussão sobre o racismo entranhado na sociedade.  

Crítica

Uma rápida colagem inicial nos lembra dos rolezinhos, que tiveram seu ápice em 2013. Jovens das periferias marcavam encontro em shopping centers, muitos deles em bairros privilegiados. A presença de rapazes e moças negros suscitou inúmeros atos de racismo por parte dos comerciantes, dos seguranças e dos estabelecimentos em si - sem falar em reportagens alarmantes da mídia conservadora. Esta introdução pode dar a impressão de que o filme será concentrado apenas neste movimento, desde a concepção até a dissolução. No entanto, o título logo se justifica: ao invés de “A História dos Rolezinhos”, trata-se de “Histórias dos Rolezinhos”, no plural, compreendendo a existência de versões e estratificações da iniciativa. Para o diretor Vladimir Seixas, o fenômeno constitui um ponto de partida para discutir o racismo estrutural no Brasil, o impacto do rolê e de outras performances culturais e artísticas, além do empoderamento de pessoas negras dentro de um país fortemente desigual. Em outras palavras, o objeto de estudo anunciado no título não se resume a um meio, nem a um fim. Bom pesquisador, o cineasta parte de um ponto específico para compreender de que maneira se insere na sociedade ao redor.

Assim, elege alguns personagens principais: a historiadora Thayná Trindade, cujo trabalho se volta à ancestralidade negra; Priscila Rezende, artista visual brasileira com obras focadas na inserção social de pessoas negras, e Jefferson Luís, músico e idealizador dos rolês. Teria sido cômodo sentá-los numa cadeira e registrar suas falas e pensamentos - diversos documentaristas se contentam com este formato ainda hoje. Felizmente, o projeto vai além de escutar o discurso pronto de terceiros. Seixas cria em parceria com estes idealizadores, seguindo-os pelas ruas, pelas universidades, através de performances nas ruas, nos palcos, nos almoços com os amigos nos fins de semana, nos congressos e nas festas de rua. O filme vai de encontro ao cotidiano destes indivíduos, sem esperar que sejam narrados ao espectador. Em consequência, produz imagens exemplares em termos de naturalismo: a câmera assume o caráter de cúmplice, tornando-se um personagem suplementar em cada uma destas interações. Para se contrapor ao preconceito da mídia, que privilegia relatos de violência e precariedade, o diretor se volta às relações familiares, à alegria das crianças frequentando as praças de alimentação, ao processo de composição ao vivo de um funk.

Rolê: Histórias dos Rolezinhos (2021) impressiona pela concepção e acabamento estéticos, sob os cuidados do próprio diretor que também assina o roteiro, a montagem e divide o cargo de direção de fotografia com Léo Bittencourt. Em contraponto às imagens de urgência, nas quais a qualidade da captação é deixada em segundo plano para privilegiar a relevância do tema, o filme apresenta composições cuidadosas, bem refletidas e executadas, resultando em uma dezena de cenas belíssimas. A conversa de Priscila Rezende com uma amiga, sentadas à mesa, traz um cuidado de luz e som raros até para as ficções dotadas de amplo controle sobre as ações. O dispositivo se encontra longe o suficiente para deixar as jovens confortáveis, mas próximo o bastante para não despertar a impressão de espiá-las numa pretensa objetividade. Este distanciamento equilibrado se reproduz na sequência da performance com as panelas, na composição de uma letra de música por Jefferson, e na deslumbrante interação entre dois amigos sobre os entulhos de um beco, com a fogueira ao lado. Seixas encontra uma maneira de valorizar o cenário, fundamental para compreendermos de onde estas pessoas vêm, e provocar falas distantes do formato engessado dos talking heads.

Já a montagem transmite uma fluidez impecável. Letreiros, divisão em capítulos e outros procedimentos de ruptura são dispensados pela narrativa, que encadeia num único fluxo os rolezinhos, um congresso acadêmico, uma roda de discussão entre mulheres negras e comerciais de televisão antigos e recentes, repletos de mensagens racistas. Ao invés de fragmentar a estrutura em subtemas, Seixas compreende que fazem parte de uma discussão só. É impossível falar em rolezinho sem pensar no papel segregacionista dos shopping centers, do corporativismo da mídia, da ascensão da extrema-direita ao poder. Uma personagem sublinha a ironia de ser vigiada nas lojas por seguranças negros como ela, que provavelmente enfrentam dificuldades financeiras semelhantes. O longa-metragem encontra tempo para respiros, para a contemplação e a leveza, sinal de que a política reside também no afeto, tão importante quanto a capacidade de indignação. A partilha de sentimentos entre mulheres após a apresentação é comovente, porque escancara a diferença de percepção e de vivências de mulheres negras e dos outros frequentadores dos espaços de compras. O filme acredita na política exercida tanto em protestos quanto na conduta cotidiana - graças à montagem, eles se tornam indissociáveis.

Por fim, o documentário chega à sua melhor proposta: aquela de que os passeios nos centros comerciais representam metonimicamente o dia a dia de qualquer indivíduo negro. “É um grande rolezinho poder transitar nesse país”, afirma um pesquisador, corroborado por outra voz adiante. A noção de enfrentar um universo controlado pelo dinheiro e o poder simbólico dos brancos, que apagam ou se apropriam de modo fetichista dos corpos negros, encontra-se tanto nos movimentos dos anos 2010 quanto na vivência histórica de povos oprimidos. Ser negro no Brasil representaria, em última instância, um grande rolezinho, razão pela qual os encontros no shopping center seriam apenas a versão midiática e explícita desta relação desigual de forças. O texto encontra brechas para sugerir que a violência do opressor não pode ser equiparada àquela do oprimido, convidando, por meio de conversas despojadas e ternas, à luta diária pela consciência de classe e pelo senso crítico. As falas racistas de Bolsonaro, o papel higiênico preto de Marina Ruy Barbosa, o espancamento até a morte de um homem negro no Carrefour constituem peças de uma única macroestrutura. Mais do que relembrar a existência destes episódios, o filme demonstra a maneira como sempre estiveram associados, tornando-se a causa ou consequência dos demais.

Filme visto online no 10º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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