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Sinopse

Deena tem uma revelação, quando descobre os segredos por trás da morte de Sarah Fier há mais de 300 anos. Enquanto percebe as semelhanças entre a vida da vítima e a sua própria, conta com a ajuda de Ziggy para quebrar a maldição de Shadyside de uma vez por todas.

Crítica

Rua do Medo 1666: Parte 3 (2021) já tinha traçado os caminhos para a conclusão nos filmes anteriores. Os espectadores que vêm acompanhando a saga sabem exatamente quais personagens encontrarão, em qual cenário, com qual elenco. No último segmento, há poucas surpresas em termos narrativos, mas a diretora Leigh Janiak oferece outros prazeres: primeiro, o de rever os atores de segmentos distintos reunidos, em novos papéis, dentro de um cenário medieval diferente das histórias anteriores. Segundo, o deleite de testemunhar os diversos símbolos sendo explicados; as pontas soltas, atadas, e a complexa linha temporal, unida. A mão de Sarah Fier, o enforcamento sob a árvore, os rituais subterrâneos de magia negra, o estranho coração gosmento, o espaço do shopping center, a ideia de “ressuscitar” para superar o feitiço e o conjunto dos monstros retornam em estrutura coesa, culminando numa explicação única para tantos espaços, épocas e personagens. Apesar do tom épico da jornada, a cineasta se mantém na intimidade dos heróis, revelando a catarse sangrenta e neon somente aos principais envolvidos e ao espectador. O restante dos moradores de Shadyside e Sunnyville sequer descobrem o que aconteceu em suas cidades (e abaixo delas).

O terceiro episódio possui o mérito de elaborar um desfecho cuidadoso, cujo clímax ocupa mais de 30 minutos. Além disso, equilibra-se entre duas temporalidades: 1666, que concentra cerca de 60% da trama, e “1994: Parte 2”, segundo os letreiros, permitindo a Deena (Kiana Madeira) e seus amigos colocarem em prática os aprendizados da viagem ao passado. As sugestões lançadas na segunda parte, relacionando a LGBTfobia no presente à acusação de bruxaria séculos atrás, se reforçam ao limite do didatismo. Preocupado em garantir a compreensão do espectador, este filme se torna o mais pedagógico, repetindo descobertas para garantir que o público termine a sessão sem dúvidas – sinal de que os produtores da Netflix miram num público amplo, sacrificando ambiguidades em nome da transparência. O roteiro promove uma associação reiterada, porém valiosa, entre a discriminação de gênero nas sociedades pré-industriais e aquela praticada na contemporaneidade. A saga conclui que a situação das mulheres nunca melhorou de fato, apenas atualizou as práticas de violência às novas sociedades. Em outras palavras, a misoginia, o feminicídio e a lesbofobia se modernizaram junto às novas gerações.

Por isso, compreende-se que os camponeses sejam interpretados pelos atores das outras temporalidades, reforçando o elo entre diferentes formas de opressão. Teria sido surpreendente nos deparar com esta escolha diante do terceiro filme, mas os produtores já tinham revelado a estratégia nos materiais promocionais, demonstrando maior preocupação em chamar a atenção do público do que em satisfazê-lo depois. Para os criadores audiovisuais da era do streaming, é melhor multiplicar as promessas e garantir a alta contagem de visualizações do que preservar as surpresas no caminho. De todo modo, a viagem a 1666 proporciona a construção de ambientes menos verossímil da franquia. Alguns atores carregam no sotaque, simulando um inglês arcaico, enquanto outros se comunicam como se vivessem nos dias de hoje. Alguns corpos são rígidos, supondo o recato e a moral controlada, já os demais se movem e seduzem de forma impossível para aqueles tempos. As direções de arte e de fotografia, tão eficazes nas partes 1 e 2, transformam-se em setores problemáticos: a nitidez impecável da fotografia, as roupas com aparência de novas e incompatíveis com os vestuários de 1666, os cabelos ora desgrenhados demais (para os homens), ora arrumados demais (para as mulheres) demonstram a indecisão dos criadores entre manter o aspecto historicamente realista e mergulhar na fantasia.

Ambas opções seriam válidas: Bridgerton (2020 -), por exemplo, introduz pessoas negras na aristocracia britânica de séculos atrás, combinando fatos comprovados com opções fantasiosas. Maria Antonieta (2006), de Sofia Coppola, apresenta um tênis All Star dentro dos armários da aristocracia do século XVIII, e Bastardos Inglórios (2009), de Quentin Tarantino, imagina uma morte fictícia para Adolf Hitler. Já Rua do Medo, incapaz de mergulhar a fundo nestas escolhas, se prende a uma discreta caracterização irreal: estas garotas lésbicas, de sobrancelhas feitas e cabelos penteados à moda do século XXI, não constituem nem uma afronta espetacular aos costumes de antigamente, nem convencem como jovens reais daquela sociedade. Existe um caráter de constrangimento, tanto nas personagens quanto na direção, ao filmar esta pérola de subversão que representa o sexo oral entre duas camponesas adolescentes numa floresta de 350 anos atrás. Atos do tipo certamente ocorreram, conforme atestam os históricos da homossexualidade nas civilizações antigas e medievais, porém tiveram seus registros apagados pelos poderes conservadores. Esta teria sido a oportunidade de gritar, com orgulho, o deleite de um relacionamento entre mulheres. Ora, a produção permanece no meio do caminho neste quesito.

Atenção: spoilers nos parágrafos seguintes.

Outra metáfora também possui eficiência limitada. Por um lado, a ideia de que o grande vilão não seja uma bruxa adolescente, e sim uma linhagem secular de homens brancos e privilegiados, oferece uma bela crítica à casta de herdeiros das civilizações atuais. Enquanto isso, são as mulheres que comandam a revanche, sem precisarem da ajuda de namorados, pais nem amigos, acertando as contas com os inimigos com as próprias mãos e o próprio sangue (literalmente). Por outro lado, a atribuição da desigualdade de oportunidades entre Shadyside e Sunnyville a uma maldição mística, que pode ser rompida pelos heróis e superada definitivamente, impede que os problemas sociais sejam compreendidos em seu caráter estrutural. Talvez por isso as cenas finais sejam incapazes de projetar o futuro dos protagonistas: após o clímax, supõe-se que os perigos acabaram, e a desigualdade estaria encerrada. Não há sugestões de que a vida melhorará em Shadyside, apenas de que piorará em Sunnyville (sinais de um gozo vingativo, ao invés de um desejo de justiça). Aliás, o roteiro derivado dos livros de R.L. Stine mantém nomenclaturas óbvias ao limite do patético: além do nome das duas cidades, um povoado desunido intitulado Union e um policial malvado de nome Goode povoam a fábula. Deena ainda evidencia: “Goode é malvado!”. A frase retorna nas pichações do shopping center.

A trilogia Rua do Medo traz uma conclusão adequada, embora tímida, diante do potencial anunciado no filme de abertura. A história sangrenta, pop e divertida do segmento inicial se torna cada vez menos aterrorizante e mais dramática, conforme revela que seu verdadeiro tema se encontra num episódio brutal e pontual de feminicídio. A ideia de que as verdades sempre serão descobertas mais cedo ou mais tarde, servindo de motor para o aspecto sobrenatural da aventura, posiciona o discurso do lado das vítimas. O desfecho reata com a estética LGBTQ (neon, fluorescente) de 1994: Parte 1, enquanto valoriza os labirintos urbanos e rurais, como havia feito em 1978: Parte 2. O projeto revela excelentes atores e principalmente jovens atrizes, ainda que todos, sem exceção, apresentem desempenhos superiores nos dois primeiros filmes, em virtude da inadequação de 1666 à reconstituição de época. É uma pena que Sadie Sink e Emily Rudd, os dois melhores nomes do elenco, possuam participação quase inexistente no encerramento, que privilegia Kiana Madeira e Olivia Scott Welch. A jornada se fecha de maneira satisfatória, embora desperte certa tristeza por desperdiçar a oportunidade de oferecer uma obra mais ambiciosa. O coração pulsante provoca forte efeito nas imagens, já a mutilação de Sarah Fier conta com direção e recursos visuais pouco apurados. O reencontro entre Deena e Sam num local simbólico reúne as lutas de todas as mulheres numa só – até a cena decidir fazer propaganda para uma marca de hambúrguer. Há mais conquistas do que tropeços nesta saga que mira alto, e atinge alguns bons alvos pelo caminho.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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