Crítica
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Sinopse
Em 1994, um grupo de adolescentes vive em Shadyside, uma das cidades com maiores índices de criminalidade nos Estados Unidos. Quando uma vendedora é atacada dentro de um shopping center por um homem mascarado, os jovens começam a suspeitar que a morte esteja conectada a crimes lendários que aconteceram no local. Juntos, precisam descobrir porque tantos assassinatos acontecem especialmente ao redor deles.
Crítica
A proliferação dos serviços de streaming nos últimos anos tem produzido um risco considerável ao cinema, sobretudo aquele compreendido enquanto espetáculo coletivo, dentro de uma sala com alta qualidade de som e imagem. Entretanto, as vantagens destas plataformas são inegáveis: para além de abrirem uma nova janela de exibição aos filmes, permitem o lançamento de uma saga atípica como Rua do Medo. Nos cinemas, teria sido impossível lançar três longas-metragens de uma franquia em três semanas seguidas – neste caso, 2 de julho, 9 de julho e 16 de julho. O cinema passa a investir na experiência de consumo acelerado das séries – agora, até as sagas de longas-metragens precisam ser maratonadas. Além disso, no circuito tradicional, o filme baseado numa série de livros juvenis, e interessada em conquistar os jovens, jamais poderia trazer tanto sangue, vísceras, palavrões e insinuações potentes de sexo. Rua do Medo 1994: Parte 1 (2021) possui classificação etária 18 anos, o que excluiria seu público-alvo das sessões convencionais. Nas casas (e também nos computadores, nos celulares etc.), a menção à idade se torna mera sugestão. Os adolescentes não precisam mais se esconder para assistirem a uma obra violenta deste tipo: o conteúdo está disponível com alguns cliques.
Além disso, a produção reúne épocas e estilos de cinema que só seriam possíveis numa pós-modernidade veloz, amante das colagens, das referências e nostálgica pelo passado. O primeiro filme aposta na trilha sonora, nas roupas e tendências dos anos 1990, já o segundo filme voltará a 1976, e o terceiro, a 1666 – o que deve permitir o desenvolvimento de estéticas autônomas, ainda que interligadas pelo modus operandi das mortes e pela cidade fictícia de Shadyside. No entanto, trata-se claramente de um produto de 2021. As cenas e os conflitos possuem a velocidade da Internet, concebidos ao público que se entedia com rapidez, habituado a mudar de conteúdo nas timelines das redes sociais. Apesar da duração considerável de 107 minutos, a narrativa apresenta um ritmo ágil, sem contemplação nem espaço para dúvidas: os personagens têm uma ideia para combater o inimigo, e num corte simples, estão executando os planos. Com mais um corte, colhem os resultados da tentativa. O trabalho de iluminação, favorecendo as cores neon, e os amplos movimentos de câmera (vide o ataque com uma navalha de madrugada, e o clímax dentro de um supermercado) favorecem a impressão de um cinema cuidadoso, endinheirado e alinhado à estética do século XXI. Em paralelo, a presença de uma cineasta mulher, pouco conhecida mundialmente, à frente de uma iniciativa deste porte (Leigh Janiak dirige os três filmes) teria sido inviável décadas atrás.
A maneira de combinar referências e estilos de terror também corresponde a uma percepção contemporânea das imagens. A jornada se inicia com os prazeres típicos do slasher, semelhante a uma nova versão de Pânico (1996 - 2011) – o assassino mascarado com uma faca na mão remete à produção de Wes Craven. Embora as passagens obrigatórias deste subgênero se mantenham, as explicações psicológicas primárias de décadas atrás (“Vou matar todo mundo porque o seu pai fez sexo com a minha mãe”) soam pouco verossímeis nos nossos tempos. Agora, as justificativas precisam combinar a estrutura do slasher com ferramentas dos filmes de mortos-vivos (os assassinos ressuscitam depois de cortados e queimados), do horror sobrenatural (a presença de uma bruxa secular cujo túmulo foi profanado), do terror-tortura nos moldes de Jogos Mortais (vide a carnificina rumo à conclusão) e das obras de possessão (conforme revelado na cena final). As críticas ao consumo, típicas dos filmes de mortos-vivos, marcam este retrato da miséria social, iniciado num shopping center e concluído num supermercado. A juventude abandonada pelos adultos, precisando amadurecer por si própria, lembra projetos que vão de Corrente do Mal (2014) a Verão de 84 (2018), Stranger Things (2016 -) e Os Goonies (1985). Pelo caminho, há referências a O Iluminado (1980), Crepúsculo dos Deuses (1950), O Massacre da Serra Elétrica (1974) e produções trash de monstros. Assim como os blockbusters de super-heróis buscam conquistar adultos e adolescentes, de todas as origens, raças e posições ideológicas, Rua do Medo 1994: Parte 1 tenta representar a “soma de todos os terrores”, apelando aos mais diversos públicos do cinema de gênero.
É interessante que as duas protagonistas sejam um casal de meninas lésbicas (na verdade, uma lésbica e outra bissexual), cercadas por personagens negros, de origem latina e asiática, percebidos como integrantes de um núcleo homogêneo. A homofobia desempenha um papel discreto, deixando que a paixão entre Deena (Kiana Madeira) e Samantha (Olivia Scott Welch) se instaure com leveza. Em paralelo, desenha-se o fundo de luta de classes: os protagonistas são marginais, sejam eles a garota pouco popular, a cheerleader que vende drogas e o garotinho negro aficionado por homicídios famosos. A produção situa Shadyside, exemplo de cidade degradada e perigosa, ao lado de Sunnyvalle, um oásis burguês de beleza e arrogância, contrapondo ambos de modo didático. Não se trata de um recurso muito sutil, porém a sutileza também passa longe das escapadas libidinosas dos cinco protagonistas simultaneamente, e das sequências de discursos inspiradores pré-clímax, em paralelo. O filme possui um roteiro tão funcional quanto quadrado, clássico. Cada cena possui um início, meio e fim, além de um propósito evidente. A diretora e a Netflix possuem preocupações maiores do que reinventar a linguagem cinematográfica ou propor subversões e ambiguidades. Por isso, cada sugestão se transforma em certeza no minuto seguinte: “Talvez exista uma maneira de salvar Sam! Existe uma mulher que sobreviveu aos ataques! Mas ela morreu antes! Então é preciso morrer e ressuscitar!”. Os personagens pensam enquanto agem.
Rua do Medo 1994: Parte 1 apresenta um mecanismo eficaz, para o bem e para o mal. Por um lado, possui um nível de produção, iluminação, cenários, figurinos e elenco que um terror de baixo orçamento jamais alcançaria. As imagens são lindas de ver, e seriam ainda mais impressionantes na tela grande. Por outro lado, perde o aspecto sujo, visceral, ambicioso e libertário que apenas uma obra independente e autoral poderia ter. Quando foram lançados, os slashers clássicos dos anos 1970 e 1980 constituíam pequenos gestos inovadores, capazes de chocar os padrões da época. Ora, a produção da Netflix está mais próxima dos terrores refinados da nova franquia It (2017 - 2019) e de Histórias Assustadoras para Contar no Escuro (2019) – com os quais compartilha o encontro de lendas distintas numa única trama, a fábula traumática de passagem à fase adulta e a paixão pelos corredores vazios (de hospitais, escolas e mercados), convertidos em palcos privilegiados do terror. O saldo é certamente positivo, revelando o talento impressionante de Kiana Madeira, interpretando uma jovem lésbica com notável respeito, além da desenvoltura cômica de Fred Hechinger como Simon e a fragilidade de Benjamin Flores Jr. no papel de Josh. A jornada se encerra sem um final propriamente dito, pois a sequência está prestes a chegar. Teria sido mais interessante que a narrativa funcionasse de modo autônomo, fechando-se por si própria ao invés de lançar novos ganchos a serem resolvidos. No entanto, a saga Rua do Medo possui a aparência de um projeto que só ganhará sentido quando as três obras forem descobertas e interpretadas em conjunto.
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