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Sinopse

Localizada no centro da cidade de Belo Horizonte, a rua Guaicurus é uma das maiores zonas de prostituição do Brasil desde os anos 1950. Atualmente funcionam mais de 25 hotéis na região, com aproximadamente 3 mil trabalhadoras do sexo.

Crítica

Existe uma questão fascinante na nova onda de filmes híbridos entre ficção e documentário. Há tempos o cinema nacional se acostumou com estilos particulares de hibridismo: 1. A alternância, em um mesmo filme, entre cenas claramente fictícias e outras, claramente documentais (O Amigo do Rei, 2019, Carta para Além dos Muros, 2019); 2. A apresentação de um registro que, em seguida, revela ser o seu oposto, criando um jogo de adivinhações (Jogo de Cena, 2007, Terra Deu, Terra Come, 2010, Beco, 2019); 3. A autoficcionalização, com o diretor colocando em cena a si próprio e aos amigos/familiares, fazendo com que a autoexposição crua se torne um convite à interpretação de veracidade, e portanto, de linguagem documental (Nova Dubai, 2014, O Futebol, 2015, Casa, 2019).

No entanto, uma linha tem se distinguido entre essas possibilidades. Trata-se de projetos nos quais o(a) diretor(a) não se expõe, e no qual o limite entre ficção e documentário se torna difícil, ou mesmo impossível, a delimitar. Some então o convite à investigação por parte do espectador, afinal, a resposta não será dada ao fim da experiência. Filmes como Baronesa (2017), Sete Anos em Maio (2019) e Rua Guaicurus (2018) provocam estranhamento por navegarem numa possibilidade ambígua entre dois registros supostamente opostos, assumindo sua postura enquanto linguagem própria. Por um lado, as falas despojadas de atores não profissionais remetem às ferramentas do documentário, por outro lado, a câmera efetua movimentos coreografados que seriam impossíveis sem controle prévio da cena, algo inerente à ficção.

Em uma cena simples de Rua Guaicurus, por exemplo, uma personagem grita através da janela o seu pedido de almoço ao comerciante que se encontra do outro lado da rua. A câmera está ao mesmo tempo com a prostituta e o rapaz, em plano e contraplano. A presença de duas câmeras simultâneas, em locais diferentes, remete à típica decupagem fictícia, ainda que a encenação corresponda à banalidade habitual do documentário. O cenário da casa de prostituição, onde se passa a integralidade da narrativa, contribui ao hibridismo: a nudez e o sexo sempre surgiram como formas de verdade por si próprias, algo difícil de falsear. As trabalhadoras da casa expõem seus corpos como se não houvesse a presença de uma câmera a poucos metros delas, enquanto os clientes fazem sexo, filmados de perto em diversos ângulos pelo diretor João Borges.

Em que medida se controla essas cenas? Pouco importa, na verdade. O interesse desses projetos de aparência simples e linguagem rebuscada se encontra na tentativa utópica de combinar a mínima interferência na vida dos personagens, nos diálogos e nos corpos, com a máxima interferência da presença do cinema, com suas diversas câmeras, seus ângulos múltiplos, sua luz construída especialmente para a filmagem. O recurso permite que as prostitutas da Rua Guaicurus se exponham com uma franqueza ímpar, retratando não apenas o corpo e a profissão como também as dificuldades financeiras, os maus-tratos de clientes abusivos, os sonhos para o futuro. Para a surpresa do espectador, uma narrativa clara se desenha ao longo deste projeto de aparência episódica. À medida que a câmera retorna à vida da novata, fazendo seus primeiros programas, ou então da prostituta experiente, que teve um filho com um cliente, e ainda de outra, que acata os fetiches mais bizarros dos homens, passamos a conhecer o temperamento e visão de mundo de cada uma delas.

De certo modo, o resultado funciona como se os tradicionais depoimentos diretamente para a câmera, comuns nos talking heads, fossem diluídos na vida cotidiana. As personagens conversam umas com as outras, mas parecem de fato falar para o dispositivo cinematográfico, e por extensão, para nós, espectadores. O cineasta rompe com a incômoda sensação dos filmes antropológicos nos quais grupos sociais são limitados a objetos de estudo, permitindo que as mulheres ganhem voz, falem por si mesmas, condicionem o espaço e o tempo das imagens. Enquanto uma prostituta muda a posição do corpo para o cliente introduzir um dedo em sua vagina com mais facilidade, a câmera também se move para captar da melhor maneira aquela situação. Estabelece-se uma parceria neste momento: enquanto as mulheres permitem a intrusão do equipamento de filmagem na situação de trabalho, o olhar da direção contenta-se em filmar pelos cantos, discretamente, sem se impor. Quem diria que a negociação mais íntima se daria não entre prostituta e cliente, e sim entre o filmante e o filmado.

Esteticamente, o projeto faz uso das luzes rosadas, alaranjadas e lilás dos quartos e corredores. O som é claro, bem captado, ainda que opte por frequentemente acompanhar as falas de apenas um dos personagens em cada dupla. A pobreza daquele local onde os programas são baratos e o tempo é cronometrado (“Três posições e oral, por trinta minutos, sai 25 reais”) é enfeitada pela mise en scène das próprias garotas, que também coordenam as cenas e atuam para os clientes, fingindo orgasmos e assumindo personagens. Assim, nasce uma metalinguagem na relação entre a fantasia do cinema e a fantasia do desejo sexual, aqui reduzido a uma atividade puramente profissional – nenhum ato sexual é filmado com qualquer vocação pornográfica ou idealizada. Rua Guaicurus despe a prostituição tanto do fetiche quanto da vitimização, naturalizando a presença dos corpos, a relação de dinheiro, e demonstrando a humanidade das trabalhadoras locais.

Enquanto isso, apresenta cenas de impressionante beleza, como a cabeleireira lésbica trançando os cabelos de uma personagem, ou o momento pós-sexo em que profissional e cliente conferem suas mensagens de celular, lado a lado, em silêncio. Para quem espera da prostituição o retrato de uma atividade empolgante, mesmo perigosa, encontrará um tempo dilatado, a vocação à espera, aos tempos mortos, e a representação de uma atividade em crise, semelhante a qualquer outra profissão de baixa remuneração e segurança. Talvez este seja um dos aspectos mais notáveis do filme: sua oferta de identificação ao espectador, que pode enxergar nestas mulheres um outro de si mesmo, independentemente de seu gênero, sexualidade ou profissão.

É ainda mais belo que o filme comece e termine com duas cenas da mesma garota fazendo xixi. No primeiro momento, vemos a jovem sentada no vaso, à distância, por trás de uma pequena mureta, como se a câmera pedisse licença para adentrar o ambiente. Na cena final, a câmera pula a mureta, ficando de frente para a garota, de quem já vimos o corpo inteiro. Ela se limpa, joga fora o papel higiênico e liga para a mãe, por quem demonstra grande carinho. Ao longo de sua curta duração, o filme se instala naquele lugar, se aproxima das pessoas de modo a ultrapassar a condição de prostituta para revelar as histórias humanas representada por tantos maridos, filhos e pais apenas citados em conversas e telefonemas, distantes da Rua Guaicurus. O filme se encerra em chave tão carinhosa quanto melancólica. Nada deve mudar naquele ambiente após a passagem da equipe de cinema, afinal, o filme não busca uma denúncia, tampouco uma intervenção salvacionista. Ele permanece com suas personagens, abandonando o prédio apenas nos últimos instantes, como se lembrasse, afinal, do mundo que existe lá fora.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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