Crítica
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Sinopse
Depois de perder o pai, a francesa Catherine decide visitar a irmã em Recife. Ela passa os dias na praia, onde conhece Gil, jovem morador local. Apesar das recomendações dos familiares ricos, ela se entrega a este relacionamento e passa a frequentar as favelas da região. Tomando decisões cada vez mais impulsivas, Catherine corre o risco de se perder - ou de se encontrar.
Crítica
Catherine (Marina Foïs) é uma protagonista obscura. Quando a francesa perde o pai e decide visitar a irmã no Recife, desconhecemos a vida no país de origem: do que ela precisou abrir mão para efetuar a viagem? Que relacionamento tinha com o falecido? Que imagem prévia possuía do Brasil? Neste drama, a heroína se limita a um corpo ao mesmo tempo presente e ausente: ela percorre as praias e apartamentos ricos da cidade, entra em festas e reuniões de desconhecidos, porém o olhar permanece absorto, visando um ponto distante. Ela se desloca sem sabermos ao certo para onde, ou com qual objetivo. É difícil saber se a francesa experimenta alguma forma de prazer, ou apenas o tédio e a indiferença em relação à nova cidade. Ela despreza os destinos turísticos, passa pouco tempo com a irmã. Trata-se de uma rara personagem que deambula em silêncio, enquanto a câmera se cola a seu rosto e corpo, tentando compreendê-la assim como o público. As narrativas convencionais apresentam seus protagonistas antes de lançá-los na aventura, porém Salamandra (2021) faz desta viagem uma longa apresentação da mulher que, ao fim da história, ainda preserva seus segredos. Ela consegue ser impulsiva e indiferente: quando suas atitudes abruptas surtem efeitos graves, conforma-se com as consequências. Catherine constitui uma figura contraditória, do tipo que o cinema raramente está disposto a abraçar - até porque ela poderia parecer esnobe e antipática, dificultando a adesão do espectador.
Marina Foïs, atriz corajosa e versátil, abraça com garra este desafio. O diretor estreante Alex Carvalho não facilita a tarefa para ela, apostando nos close-ups em instantes sem conflito aparente, quando a mulher admira o horizonte, senta-se na praia ou teima em ajustar o biquíni. A intérprete poderia definir estes gestos, atribuindo irritação, cansaço ou uma apatia patológica, mas insiste em deixar as interpretações indefinidas: cabe ao espectador projetar o sentimento de sua predileção na expressão vaga da atriz. Como o ponto de vista se cola a esta personagem, o mundo ao redor se torna opaco: conhecemos pouco da irmã (Anna Mouglalis) e do cunhado (Bruno Garcia), e jamais acessamos a intimidade de Gilberto (Maicon Rodrigues), garoto recifense com quem se relaciona. Para a heroína que desconhece a língua portuguesa, a incomunicabilidade se converte num ponto de partida e num meio: Catherine se expressa pouco porque não consegue, nem o deseja. A condição de estrangeira molda sua situação em solo brasileiro: em partes, ela controla o contexto graças à condição financeira e à ausência de amarras sentimentais/sociais, por outro lado, é controlada pela cultura, pela geografia e pela língua distintas. Quem é o dominante e o dominado no namoro com o rapaz negro, pobre e muito mais novo do que ela? Quem tira proveito de quem nos planos envolvendo grandes somas de dinheiro? A ambiguidade se sustenta ao longo do percurso.
Esteticamente, Salamandra demonstra uma ambivalência semelhante. O diretor poderia ajudar a compreensão do público, mas prioriza a atmosfera e os não-ditos. Por isso, trabalha com cenas noturnas de um escuro profundo, onde os elementos mal se distinguem do cenário, em conjunção com um desenho sonoro “sujo”, permitindo falas balbuciadas e incompreensíveis, sob o barulho das ruas e dos vizinhos em Olinda. Em paralelo, recorre a cenas longuíssimas. A obra valoriza a banalidade cotidiana, os tempos dilatados, os pequenos indícios sensoriais (o forte vento pela janela do apartamento, a música presente, a descoberta da culinária pernambucana). A montagem favorece sequências de suposta letargia enquanto comprime as reviravoltas em momentos bruscos, sucintos até demais. De certo modo, o ritmo do filme respeita as atitudes da heroína: as ações ocorrem de repente, sem reflexão prévia, ao passo que as consequências são ignoradas ou atenuadas. Os dilemas envolvendo a compra de uma motocicleta, a aquisição do bar e a invasão de uma propriedade privada ocorrem de maneira tão veloz que se aproximam do absurdo, ou do realismo fantástico - o projeto mantém a impressão de um sonho produzido pela psique frágil de Catherine. É possível que o espectador nunca testemunhe os fatos, apenas fragmentos de atividades pelos olhos seletivos e perturbados da estrangeira em luto.
A aproximação entre a francesa e Gilberto desperta alguns dos questionamentos mais delicados, e também mais importantes, do filme. Em 2005, Em Direção ao Sul, outro drama selecionado no Festival de Veneza, despertou paixão e ira pelo retrato de mulheres brancas e europeias passeando em países pobres para aproveitar o sexo com fortes homens negros. O filme de Laurent Cantet estaria apenas constatando o fetichismo da miséria e a hipersexualização dos negros? Estaria criticando, ou tolerando esta atitude? Debates semelhantes podem decorrer da coprodução brasileira-francesa-alemã. Baseada na obra de um francês que morou no Brasil, e desenvolvida por artistas do Brasil e da França, a trama caminha pela linha tênue entre honrar a alteridade e objetificá-la, entre apoiar os gestos da viajante ou menosprezá-los. Catherine insiste que o caso com Gil seria “apenas uma transa”, no entanto, age como uma pessoa apaixonada e possessiva. O jovem nutre sentimentos variáveis pela europeia com quem sequer conversa direito. A exemplo do projeto de Cantet, o ponto de vista se cola ao europeu, em sua jornada descompromissada a um país colonizado pelo qual estima possuir responsabilidade nula. O filme discute o imperialismo contemporâneo ou, em chave oposta, o reforça de maneira condescendente? Haveria motivos suficientes para sustentar ambas as leituras. O posicionamento político se torna impreciso: a obra se nega a apontar o dedo contra qualquer um dos lados do Atlântico. Ao contrário de outras obras que enxergam na especulação imobiliária em Pernambuco um retrato do perverso capitalismo do século XXI (Aquarius, 2016, Piedade, 2019), Salamandra prefere o universo psicológico ao sociológico, num gesto possivelmente condescendente com estas formas de exploração.
Ao menos, o roteiro foge às descrições estereotipadas do garoto pobre e malandro, da madame privilegiada, dos colegas aproveitadores etc. A jornada da imigrante se desenvolve através de saltos improváveis, surreais, representados em cenas poéticas - o corpo erguido pelos participantes de uma festa, a invasão ao terreno do bar, o sexo na rede. A narrativa se condiciona ao ritmo das alterações emocionais em detrimento dos fatos - em outras palavras, é Catherine que condiciona seu destino, ao invés de ser detida pelo realismo. De fato, a conclusão mergulha na fantasia, justificando o título ao longo de uma sequência brutal e silenciosa dentro do elevador. A protagonista vai de encontro a tudo aquilo que lhe acontece de positivo e negativo, insistindo em decisões que a prejudicarão. A pulsão de morte e a reação ao luto se encontram nas tendências autodestrutivas da mulher misteriosa. Ela poderia ser considerada uma prima distante de Lóri (Simone Spoladore) de O Livro dos Prazeres (2020), outra obra de experiência sensorial e sexual com uma nova cidade, entre o hedonismo e a sensação de vazio. Para um primeiro longa-metragem, Alex Carvalho oferece uma obra de ambições profundas e leituras múltiplas, onde as indefinições constituem seu foco de interesse e sua possível fragilidade. Será fácil abraçar ou repudiar o resultado pelos mesmos motivos - ou talvez apenas ignorá-lo, pelo desconforto estético e político que deve provocar. Esperemos que, no mínimo, suscite um debate à altura de sua ousadia.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 7 |
Celso Sabadin | 2 |
Alysson Oliveira | 3 |
Francisco Carbone | 4 |
MÉDIA | 4 |
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