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Sinopse

Oliver está lutando para encontrar seu lugar na Universidade de Oxford, no Reino Unido. É quando ele conhece o aristocrático Felix, que o convida para passar um verão supostamente inesquecível em Saltburn, a enorme propriedade de sua excêntrica família.  

Crítica

Segundo declarou em algumas entrevistas de divulgação deste seu mais recente trabalho como diretora, Emerald Fennell considerou uma vitória particular ter garantido Jacob Elordi como um dos protagonistas de Saltburn. O bonitão da série Euphoria (2019-2025) e da trilogia A Barraca do Beijo está em plena ascensão em Hollywood, tendo atuado nos últimos tempos também sob o comando de outros cineastas respeitados, como Sofia Coppola (Priscilla, 2023) e Paul Schrader (Oh Canada, 2024). Fennell, no entanto, não se contentou em apenas tê-lo em cena, mas desejava também transformá-lo (na medida do possível, é claro). E, nesse sentido, o que conseguiu foi colocar um piercing na sobrancelha do rapaz – algo que desagradou os investidores e executivos responsáveis pelo projeto, que não queriam que o perfil esteticamente agradável do novo galã fosse afetado. Mesmo que estes fossem contrários a essa decisão, inclusive com ameaças de retirar seus aportes financeiros para a realização do longa, ela lutou pelo que acreditava, e acabou convencendo-os – ao menos em parte. Sim, pois o tal adereço desaparece ainda na primeira meia-hora de projeção, sob uma desculpa esfarrapada (“minha mãe não pode ver”, declara seu personagem, justificando-se). Importante citar esse pequeno detalhe, ainda mais diante de um contexto mais amplo, pois se mostra reflexo do filme como um todo: aparentemente provocador, mas vazio em suas intenções, ameaçando uma rebelião nos primeiros instantes, para logo em seguida abandoná-la, ciente do seu poder de fogo limitado e carente por uma zona de conforto que lhe seja agradável.

Apesar do frenesi em torno da presença de Elordi (que de forma alguma compromete, ainda mais diante das limitadas demandas que dele são exigidas), o real interesse de Saltburn recai sobre Barry Keoghan, recém-saído de sua primeira indicação ao Oscar, por Os Banshees de Inisherin (2022). O provável Coringa de Batman (2022) – uma performance aludida por aqui, quando aparece com o rosto borrado de sangue, em um arremedo de sorriso vermelho e desfigurado – é Oliver Quick, um bolsista em uma escola de elite na Inglaterra do início dos anos 2000. Deslocado, acaba sendo vítima de um bullying discreto por parte de alguns colegas, até cruzar o caminho de Felix Catton (o citado Jacob Elordi), o atleta, desejado pelas garotas e cuja atenção é disputada pelos rapazes. Entre os dois surge uma amizade difícil de explicar, mas cujas razões podem ser compreendidas: enquanto um encontra no herói de ocasião a guarda que tanto almejava, o outro tem da mesma forma suas carências sanadas por alguém que passa a lhe dedicar um olhar cativo, misto de admiração e suporte. Ambos precisam daquele que passa a estar ao lado, porém em níveis diversos, que fique claro.

Oliver não quer perder Felix de vista, mas quanto mais se aperta algo, maior é a probabilidade de perder essa coisa, seja pelo esmagamento (físico ou psicológico) ou pelo escape deste, que passará a ansiar pela mesma liberdade de outrora. E quando os laços entre eles ameaçam se partir, o destino se encarrega de mais uma vez uni-los: as aulas acabam, e vendo que o colega ficará sozinho, sem ter para onde ir, Felix opta por um último ato de bondade e o convida para passar o verão consigo e sua família na casa – ou, melhor dizendo, mansão – de campo que possuem: a tal Saltburn do título. O ‘sal queimado’ que uma tradução literal aponta para uma postura radical, de alterar aquilo que aparentemente se mostra em seu melhor estado, pode ser a leitura para o que acontece com os Catton a partir do momento em que abrem a porta para esse convidado. Aos poucos, os que não são necessários serão descartados (a amiga vivida por Carey Mulligan, o primo aproveitador de Archie Madekwe), enquanto aos remanescentes será dedicada toda sua voracidade, tanto como num processo de simbiose, mas, principalmente, de eliminação.

Como essa rápida sinopse é eficiente em alertar, as referências da realizadora – também roteirista – são evidentes, e vão desde Teorema (1968), de Pasolini, até o mais recente O Talentoso Ripley (1999), com Matt Damon. Em ambos o elemento sexual é latente, ainda que em uns seja mais evidente do que em outros. Fennell vai por um caminho intermediário, sem atentar de modo demasiado para o espectro de ilusões e fantasias que Elordi se mostra hábil em emular, mas permitindo que o verdadeiro ator que tem a seu favor – Keoghan, hipnotizante – faça do espaço que encontra disponível seu parque de diversões. Isso se dá, no entanto, sem um foco claro além daquele óbvio (o fim pela simples aniquilação, o poder pelo excesso), como uma criança mimada e birrenta que se recusa a ser controlada. Quando sua máscara ameaça ser retirada, a revolta virá em maior grau, proporcional a uma insatisfação acumulada e temporariamente irritante, mas não o bastante para dissuadi-lo de suas intenções. Não importa o que fará uma vez que seus desejos sejam atendidos: o esforço está no processo, e não no fim.

Fennell não se mostra falha apenas no conceito, mas também em sua execução. A primeira parte do drama, ambientada na escola, é não mais do que um prólogo descartável, que um bom roteirista conseguiria resolver em diálogos posteriores, sem tamanho ensaio que mais distrai do que colabora com o ambiente a ser desenvolvido. Já o desfecho beira o constrangimento, seja pela necessidade em expor motivos e métodos, mas também pelo didatismo com que conduz cada resolução, não permitindo ao espectador nenhum grau de dúvida quanto as suas próprias resoluções – o filme é dela, e de ninguém mais. É de se lamentar que em meio a um imbróglio afeito à polêmica vazia e passageira, repleto de cenas controversas, mas de escasso significado (o ralo da banheira, a profanação do túmulo), reste apenas uma trama dedicada a provocar os desprovidos de referências, que se impressionam com pouco e na mesma proporção quase nada exigem em retorno. Saltburn parte de uma ideia já muito explorada, mas não desprovida de charme, que é a burguesia sendo corroída por aqueles que ela própria subestima. Mas pouco agrega ao debate além disso, contentando-se em indicar o óbvio, sem dar um passo além daquilo percorrido tantas vezes antes por quem, de fato, tinha algo a dizer sobre o assunto.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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