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Imagine um documentarista assistindo ao jogo de futebol entre Brasil e Alemanha na Copa do Mundo de 2014, pego de surpresa — como todos ficamos — diante do placar de 5×0 nos primeiros 29 minutos. Há mais jogo pela frente, porém esse recorte oferece um material excepcional por si mesmo, certo? Ele se dedica, então, a reconstituir o instante excepcional que todos acabaram de testemunhar, e embora o resultado chegue aos cinemas muito após o término do jogo completo, não há problema algum: colocam-se letreiros atualizando informações em pós-produção, e dá-se a representação do tema por completa. Ora, de que maneira mergulhar na partida tendo compreendido apenas parte dela? Como investir na análise do jogo enquanto ele perdura? Uma sensação semelhante ocorre ao longo da sessão de SARS-Cov-2: O Tempo da Pandemia (2021), filme a respeito da crise de Covid-19 produzido e lançado durante a crise de Covid-19. As entrevistas mencionam números desatualizados, a partir dos dados de maio de 2021. Embora letreiros explicativos atualizem os índices de mortos e contaminados para setembro, eles já são velhos em novembro, quando o documentário chega à Mostra de São Paulo e ao circuito comercial. Esta será a consequência inevitável de analisar um processo em curso: ele será superado pelo tempo, e impossibilita o distanciamento necessário à reflexão.
De fato, a obra possui uma temporalidade inconveniente, próxima à autossabotagem. No caso, o filme chega aos cinemas cedo e tarde demais. Cedo, porque ainda vivemos a pandemia, continuamos registrando mortes, contaminações, e o vocabulário associado a vacinas, máscaras e álcool gel segue fazendo parte de nosso cotidiano. Tarde, porque o discurso visa trazer alertas humanitários e sanitários que já se tornaram senso comum: “É um tipo de pandemia muito perigosa, que restringe a capacidade respiratória”, alerta Dráuzio Varella. “Estamos vivendo um momento ruim da pandemia”, avisa outra voz. Que sentido terá essa frase no futuro? Que momento específico é esse? Neste delicado pressuposto de história do tempo presente, os diretores Lauro Escorel e Eduardo Escorel oferecem a constatação de um tópico onipresente e impossível de esquecer, seja pela reincidência na mídia e no debate político, seja pela proximidade temporal. Alguém desconhecia a ausência de respiradores em Manaus? O fato que foi preciso fabricar, com urgência, uma quantidade excepcional de máscaras? Alguém precisava ser alertado acerca da dificuldade de ficar longe dos familiares por motivo de proteção? A narração se dirige ao espectador amnésico, ou talvez àquele de gerações futuras, buscando um resumo rápido do que ocorreu em 2020-2021.
A escolha de despolitizar a discussão se revela ainda mais questionável. Caso os autores tivessem em mãos um tema apartado da política partidária e das decisões do Estado — se estudassem a evolução musical de um artista, ou a guerra num país distante, por exemplo — a menção a Jair Bolsonaro seria descabida. Em contrapartida, num projeto visando a compreensão da crise pandêmica no Brasil atual, a omissão de Bolsonaro soa absurda, ao limite do fantasioso. Como compreender o atual momento sem mergulhar na gestão da extrema-direita, no papel dos filhos do presidente, a desinformação, as fake news, a demora deliberada em adquirir vacinas, as motociatas sem máscara, a recusa do presidente em se vacinar, o desprezo pelo lockdown, a ausência de campanhas públicas, as brigas com governadores de outros Estados? Como ignorar a estratégia da extrema-direita semelhante àquela adotada por Trump, baseada nas ideias de Steve Bannon? Reconhecer o caráter evidentemente político do contexto seria uma questão de coerência ideológica e responsabilidade com o espectador e com familiares das vítimas. Os médicos citam, por alto, “pessoas de liderança que passam mensagens dúbias”, demonstrando a contrariedade com um governo que não coopera, nem prega medidas sanitárias. A atenuação da responsabilidade de Bolsonaro, Mandetta, Pazuello e outros é moralmente condenável.
O painel de conversas se restringe a uma categoria bastante específica de entrevistados: trata-se dos membros da organização Todos pela Saúde, formada por médicos e empresários, representantes de hospitais de elite. Com exceção da porta-voz de um banco, cuja opinião é ouvida pela colaboração com fundos à empreitada, e de uma única cuidadora negra, que lamenta a falta de seus idosos durante o isolamento social, o mosaico se limita a homens brancos ligados à diretoria de instituições. Juntos, expressam tanto o ponto de vista especializado quanto aqueles dos respectivos hospitais. Suas conquistas (distribuição de máscaras, de respiradores, abertura de creches, além de outras medidas incansáveis, todos os dias da semana, de modo voluntário) certamente são louváveis. No entanto, soam como discurso institucional para as marcas envolvidas e, além disso, impedem a compreensão das origens desta verba, da relação destas atividades com o governo federal, com os eleitos estaduais e municipais. O painel seleto de figuras eloquentes e benevolentes traz falas fortes, de conteúdo unívoco (ninguém discorda ou oferece nuances a respeito das políticas de enfrentamento à pandemia), mas sobretudo, enxerga na resposta à Covid-19 uma questão da boa vontade de alguns, ao invés de um caso de política pública. O filme elogia o gesto honrado de um punhado de cidadãos, sem perceber que estes constituem a exceção, não a regra. É ótimo que tenham feito tudo o que puderam, porém, suas iniciativas precisam ser compreendidas dentro de um sistema de inação do presidente e de seus ministros — o grupo autônomo nunca foi o verdadeiro responsável por combater o vírus, conforme eles próprios admitem.
Resta a impressão de um projeto elaborado às pressas, tanto conceitualmente quanto em termos de produção. O objetivo artístico e de comunicação a partir dessas conversas soa vago demais, enquanto as escolhas estéticas e de linguagem carecem de refinamento. O documentário se move a partir de um sem-número de stablishing shots banais, com planos aéreos registrados por drones, enquanto coloca a quase integralidade dos homens sob fundos idênticos, conversando em tom semelhante e produzindo imagens equivalentes, do início ao fim. Este estilo se esgota, enquanto as falas se arrastam — e não é a sequência de choros, de caráter explorador, que atenua esta impressão. Os autores evitam conversar com vítimas, familiares, enfermeiros, políticos de cidades pequenas e grandes, pais e mães de família, diretores de presídios e asilos, comerciantes e trabalhadores autônomos. A câmera posiciona estes especialistas sobre o fundo típico de reportagens televisivas, sem acompanhá-los em seus trabalhos cotidianos. Certo, as restrições ao deslocamento impediam tal abertura ao mundo, mas teria sido fundamental preparar alternativas visuais e simbólicas a este obstáculo. Por fim, reafirma-se o óbvio, e relembra-se a ferida que está longe da cicatrização: houve certa vez um vírus letal, de origem desconhecida, que se alastrou mundo afora e matou milhões de pessoas pelo planeta. Isso é pouco enquanto cinema, jornalismo e discurso político.
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