Crítica


7

Leitores


1 voto 6

Onde Assistir

Sinopse

Bruno é um adolescente de 15 anos. Com um mundo inteiro a ser descoberto, ao mesmo tempo precisa enfrentar uma triste realidade: está perdendo a visão. Cercado pelas incertezas típicas de sua idade, que ganharam novas proporções pela cegueira iminente, o rapaz irá passar por uma jornada de aprendizagem coletiva.

Crítica

O protagonista de Saudade Fez Morada Aqui Dentro é o típico adolescente avistando as inúmeras demandas da vida adulta no horizonte. Do alto de seus apenas 15 anos de idade, Bruno (Bruno Jefferson) já se vê às voltas com amores iniciáticos, tem um lado brincante conectado à sua infância, mas também se depara com amigos fazendo planos para ingressar na universidade. Porém, o que determina a natureza precoce de seu amadurecimento é um diagnóstico terrível. Portador de uma doença oftalmológica, ele ficará cego mais cedo ou mais tarde. Com isso, o cineasta Haroldo Borges planta uma bomba-relógio na trama, pois a cegueira pode ser (como de fato acontece) repentina, sem necessariamente dar sinais de degeneração gradativa. Claro, o primeiro sentimento é o da negação, vide a recusa de começar a aprender braile e se preparar ao inevitável. Nos chamados coming of age (filmes de amadurecimento), geralmente há um evento fronteiriço entre a restrita meninice e a emancipação rumo à vastidão do mundo. Nesse longa-metragem o acontecimento que demarca essa passagem natural não é propriamente a cegueira, mas o momento no qual Bruno percebe que, mesmo cego, poderá ter autonomia. É nesse instante que o rapaz oscilante entre a infância e a vida adulta percebe as possibilidades encobertas por seus preconceitos, como uma nuvem que não deixa perceber o sol da manhã.

Haroldo Borges aproveita algumas convenções dos filmes de adolescente, como as dores e as delícias de deixar a infância para trás, as dificuldades diante dos primeiros amores, as barreiras no diálogo com os pais e a escola não o ajudando a adquirir conhecimento e cidadania. No entanto, o cineasta não constrói os conflitos em torno desses surrados lugares-comuns, deles se apropriando somente para destacar algo de universal – afinal de contas, em que pesem as particularidades, todos passamos por esse momento conturbado da vida. Sua câmera na mão com planos fechados e foco curto dá a entender que as atenções precisam ser mantidas na intimidade, não fundamentalmente no contexto em que as pessoas estão inseridas. Claro que faz diferença a história ser totalmente ambientada numa cidade interiorana, longe das agitações metropolitanas e com poucas perspectivas aos jovens. Um dos efeitos dessa moldura é sugerir que amizades, paixões e afins serão logo rompidos por partidas (sobretudo de quem vai buscar na capital uma perspectiva melhor de futuro). No entanto, Bruno não tem condições, a curto prazo, de conjecturar uma mudança de endereço visando ganhar alternativas melhores, pois precisa lidar com a iminência da cegueira e os desafios que essa condição lhe imporá. Haroldo ressalta que o protagonista parece condenado à dependência e ao silenciamento desde que recebe o diagnóstico, a julgar pela a cena em que mãe e professoras discutem na sua presença.

Saudade Fez Morada Aqui Dentro é um filme daqueles que dá tempo ao tempo, não se furtando de ocasionalmente esticar cenas de aparência banal para oferecer ao espectador oportunidades de contemplação. Como quando Bruno e sua melhor amiga, Angela (Angela Maria), se demoram em conversas corriqueiras ou nos instantes em que ele e o caçula, Ronnaldy (Ronnaldy Gomes), ficam se provocando como convém aos irmãos-parceiros. No geral, essas passagens enriquecem o desenho dos personagens, pois revelam certos aspectos importantes de personalidades que poderiam passar despercebidos se a atenção fosse restrita ao problema que Bruno enfrenta por conta da condição médica. Outro ponto positivo é que Haroldo não reduz o menino a uma barganha emocional com o espectador, pois também o encara tendo comportamentos e atitudes pouco louváveis, como ao exibir traços homofóbicos diante dos boatos maldosos sobre o relacionamento afetivo de Angela e Terena (Terena França). Aliás, o longa quebra pontuais expectativas referentes aos lugares-comuns desse tipo de produção adolescente, sendo a principal delas a que diz respeito às duas garotas. Uma é apresentada como a “inconfundível” amiga secretamente enrabichada por Bruno, enquanto a outra é a paixonite do menino. No entanto, nenhuma delas desempenha efetivamente tais papeis, subvertendo as promessas.

Bruno emite opiniões que apontam ao ambiente social onde vive – como ao estranhar a paixão entre as meninas, ao calar quando ouve gracinhas homofóbicas, ao ter restrições diante do professor que lhe oferece ajuda por conta dos boatos de sua homossexualidade. Ele é enxergado como um produto da cultura machista estabelecida por ali, em algum momento até reforçada pelo discurso da mãe. No entanto, Haroldo Borges evita que os personagens sejam tipificados, buscando incansavelmente a complexidade que às vezes resvala nas contradições. Saudade Fez Morada Aqui Dentro não é enfático, pois evita diagnósticos sociais, emocionais e psicológicos que prendam seus personagens em caixinhas a partir das quais se expressariam com certas limitações. Haroldo opta por uma mise en scène enxuta e crua que sublinha a naturalidade das conexões pessoais, transparecendo uma vontade de retirar qualquer teor melodramático dessa trajetória, então sóbria, desenvolvida em torno do jovem que amadurece ao negociar com suas frustrações. Bruno se depara com o desapontamento por perder a visão, por ser excluído de uma equação amorosa e por ter comprometida a autonomia que então o definia como criança. Mesmo que perca de vista o irmão caçula por muito tempo e sobrevoe rapidamente a educação emancipatória, a despeito da cegueira, o filme faz um retrato bonito da tormenta adolescente.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *