Crítica
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Sinopse
Adoniran Barbosa conta para um jovem garçom histórias de uma São Paulo que não existe mais. O músico se lembra da saudosa maloca onde viveu com Joca e Mato Grosso, do amor dos três por Iracema e de outros personagens que inspiraram seus sambas.
Crítica
A trama de Saudosa Maloca é contada por Adoniran Barbosa (Paulo Miklos) a Cícero (Sidney Santiago). Este jovem garçom serve o compositor consagrado com a reverência que os grandes artistas merecem. Pena que o diretor Pedro Serrano questiona apenas uma vez a confiabilidade do narrador, justamente quando Cícero pergunta ao dono do bar se os integrantes dos causos de Adoniran existiram: “pouco importa”, diz o sujeito. Relevantes mesmo são as situações e os personagens das canções de um dos sambistas paulistanos mais importantes de todos os tempos, nascido João Rubinato em 1912. Aliás, o cineasta é íntimo do universo de Adoniran, pois havia dirigido o curta-metragem Dá Licença de Contar (2015), uma espécie de embrião deste longa-metragem, e o documentário Adoniran: Meu Nome é João Rubinato (2020). Felizmente escapando aos lugares-comuns das cinebiografias convencionais, a mais nova iniciativa não faz apanhados didáticos da vida e da obra do artista, preferindo representar cinematograficamente o rico entorno de um sujeito que tentava conseguir sustento na música enquanto convivia numa maloca com seus melhores amigos, Mato Grosso (Gero Camilo) e Joca (Gustavo Machado). Como pano de fundo, a gentrificação do bairro, as imposições de um progresso agressivo e duro que implode edificações em função da especulação imobiliária ocupada em transformar a paisagem.
Construindo uma trama que mistura fatos, lorotas e enredos de canções famosas, tais como "Trem das Onze", "Tiro Ao Álvaro" e "Saudosa Maloca", Pedro Serrano faz de Saudosa Maloca um apanhado de contos que retratam o cotidiano das classes pobres da sociedade paulistana e colocam em xeque mudanças ocasionadas justamente pelo progresso. Morando precariamente na maloca que, a despeito da insalubridade, era um lar genuíno, Adoniran passa boa parte dos seus dias no bar Bleque Tais, puxando sambas deliciosos em rodas animadas, testemunhando a ronda dos abutres imobiliários de olho na obsolescência da vizinhança para transformá-la num investimento lucrativo. Paulo Tiefenthaler interpreta Pereira, o carniceiro especulador que se esbalda no sofrimento alheio, tentando seduzir os miseráveis com propostas “bem acima do valor de mercado”, pagando de santo salvador, mas somente reproduzindo o velho jogo de comprar na baixa e vender na alta. Como bom (mau) capitalista colocado na posição de vilão, Pereira é uma figura pegajosa, claramente estranha àquele ambiente propenso à boemia, mas também capaz de incentivar a garçonete que deseja se transformar em modelista. Esta é a forte Iracema (Leilah Moreno), retrato da proletária prestes a ascender socialmente por conta do talento, ainda que o desenvolvimento dê margem para antevermos o que vai acontecer com ela.
Saudosa Maloca não se aprofunda nos assuntos, mas eles estão à disposição. A miserabilidade, a malandragem, a especulação imobiliária, os sonhos artísticos dos indivíduos simples, a genialidade escondida nos escombros da maloca prestes a sucumbir. Tudo isso perpassa os causos que Adoniran conta ao jovem garçom cujo talento com o violão de sete cordas é bem maior do que a destreza com pedidos, copos vazios e garrafas indo e vindo. No entanto, nada é tratado como prioridade, nenhum desses tópicos atrai os demais como se fosse um centro gravitacional. Temos um filme leve, divertido, com personagens para lá de singulares e boas atuações. Paulo Miklos se sai bem como o velho Adoniran que bate ponto diariamente no boteco para descolar um uísque e talvez alguns petiscos gratuitamente. No entanto, a produção bota demasiadamente o pé no freio diante de possibilidades dramáticas muito interessantes, como a relação entre o presente ainda um tanto decadente no bar Bleque Tais e o passado no qual suas dependências ficavam cheias de pessoas dispostas a ouvir um bom samba sobre as camadas populares da sociedade em situações comuns. As letras falam sobre coisas banais, por exemplo, da necessidade de pegar um trem antes das 23h, afinal de contas existem mães que não dormem antes de os filhos chegarem. Ao não mergulhar em certas coisas, o filme se contenta com o raso.
Em várias passagens, Adoniran perde espaço para Mato Grosso e Joca, algo compreensível, pois os dois apenas existem a partir das lembranças (ou da invenção) do artista que relembra os velhos tempos ou os reelabora em termos ficcionais partindo de experiências reais. Em tom de farsa, somos apresentados não necessariamente ao processo criativo de um gênio da música, mas ao resultado dessa criatividade que rendeu canções imprescindíveis do cancioneiro popular brasileiro. No fim das contas, os personagens são muito mais representativos do que singulares. Mato Grosso é o encrenqueiro romântico; Joca o mulherengo de lábia doce e jeito de Don Juan; Adoniran o gênio persistente; Iracema a sonhadora talentosa; Pereira o capacho engomadinho de uma classe endinheirada que está pouco se lixando para as histórias impressas nas paredes no caminho da especulação imobiliária; Cícero uma espécie de continuidade de Iracema, o atendente de bar que pode sonhar com dias melhores em função de uma habilidade incomum. Formada por pequenos contos, a trama é uma espécie de mosaico de tipos interessantes inseridos num contexto social/histórico infelizmente pouco elaborado. Se explicitasse melhor a impossibilidade de diferenciar verdade, ficção e empréstimo poético, o filme ainda ganharia em termos de linguagem. De todo modo, o saldo é positivo por conta do carisma dos personagens.
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