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Crítica


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Sinopse

Depois de perder sua irmã gêmea, Nagisa reza diariamente para conseguir se comunicar com a falecida Sayo. Um dia ela é levada por um taxista estranho a um mundo de mortos onde poderá alcançar a irmã pela última vez.

Crítica

Antes do advento do Neorrealismo Italiano nos anos 1940/50, o cinema geralmente mantinha certa distância da realidade. O paradigma hollywoodiano transformava em predominante a ideia da ilusão, de algo “maior que a vida” que, para tanto, deveria conter mais de sonho e idealização do que de cotidiano. Aí veio a Segunda Guerra Mundial. As contingências da época, aliadas ao ímpeto criativo da geração italiana e à evolução tecnológica (equipamentos mais leves, por exemplo), promoveram uma aproximação fundamental entre a realidade e o cinema. Antes totalmente divorciados, os dois passaram a ser aliados em constante e fértil intercâmbio. Selecionado para o 13º Cinefantasy, Sayo transita de modo muito interessante entre as imaginações e os fatos. A protagonista é Nagisa (Nagisa Chauveau), mulher que narra a sua imensa tristeza posterior à morte da irmã gêmea, Sayo – algo que aconteceu, mesmo, pois a gêmea de Chauveau morreu realmente em 2018. O cineasta Jeremy Rubier não revela isso por meio de um letreiro explicativo ou de algo que o valha. No entanto, utiliza imagens documentais (especificamente as de vídeos caseiros) para dar forma cinematográfica às lembranças da personagem principal. Então, as imagens reais preenchem a telona enquanto a voz expõe a dor.

Os limites entre ficção e realidade não são vulgarmente enfatizados em Sayo. Por exemplo, quando Nagisa Chauveau fala de memórias da infância e arrependimentos que tem em relação à irmã, ela está improvisando com base em sua experiência ou simplesmente interpretando um texto relacionado a essa sua experiência real? Jeremy Rubier não situa o espectador nesse jogo narrativo, com isso embaralhando ainda mais as instâncias que se misturam. Realidade e ficção estão constantemente se envolvendo e, quiçá, interferindo uma na outra. A textura das filmagens caseiras é utilizada pelo realizador dentro da convenção que elas criaram ao longo da história do cinema: a de sublinhar os aspectos íntimos e familiares. A partir delas temos acesso a fragmentos da infância das meninas que pareciam tão felizes ao ignorar que uma tragédia se abateria sobre o vínculo gerado no mesmo ventre durante os nove meses anteriores ao nascimento. Nagisa fala que deveria ter lido das cartas da irmã, que não poderia ter deixado passar as oportunidades de se aproximar dela novamente. De certo modo, estamos diante de um filme em que o arrependimento é o arauto da tristeza, o sentimento que puxa o fio da dor. A protagonista ora fervorosamente para poder dialogar pela última vez com a íntima falecida.

Sayo embaralha criativamente a ficção e a realidade, fazendo-as se tornarem apenas um bloco narrativo cujos limites são quase indecifráveis. O surgimento do elemento fantástico eleva a comunicação a outro patamar. Depois de rezar num tempo – sequência em que o cineasta é minucioso no sentido de ressaltar a beleza da liturgia de fé e reivindicação, Nagisa entra num táxi qualquer e é conduzida a uma espécie de limbo onde as almas esperariam o momento de descansar em paz no paraíso. E a mudança entre os ambientes físico e metafísico é cinematográfica. O primeiro abriga cenas majoritariamente à noite, o que torna sombria a nossa experiência com a realidade. O segundo abriga cenas majoritariamente diurnas, o que torna ensolarada a nossa experiência com o espiritual. Um tem cores escuras e frias; o outro tem abundantes tons claros e quentes (convidativos). O efeito disso é mostrar que Nagisa terá uma jornada luminosa por esse cenário irreal no qual é obrigada a sacrificar um tempo de existência para conseguir realizar o desejo de contatar Sayo pela última vez. Estamos diante de um conto ilustrado cinematograficamente como um percurso de aceitação e remissão de culpa. Os contornos oníricos ficam por conta da ênfase à beleza estonteante da paisagem no pré-morte.

Sayo é um filme espiritual, no sentido estrito do termo. Existe uma base religiosa nessa marcha de aprendizados e contatos com algo para além daquilo que os olhos podem ver. Do ponto de vista da linguagem, é instigante o curto-circuito entre as texturas e as lógicas concretas com as equivalentes da mais pura fantasia. As memórias têm características visuais e sons oriundos dos registros antigos de uma realidade factual. Já a redenção possui tonalidades mais extraordinárias, dignas da natureza inventiva. O andamento da trama é compassado para sublinhar o quão fundamental é o aspecto contemplativo impresso por Jeremy Rubier nesse aprendizado essencial que visa trazer paz aos vivos e aos mortos. As orações de Nagisa prendem Sayo num limbo, a impedindo de seguir adiante, assim como a (auto)ancoram numa tristeza que assume contornos de obsessão e autoflagelo. Talvez um realizador mais disposto a valorizar a intensidade imediata dos gestos (viradas, choros, rompantes, catarses, etc.) pudesse contar a mesmíssima história em cerca de 40 minutos ou até menos. No entanto, Rubier propõe um andamento cadenciado pela natureza etérea da experiência de sua protagonista. O tempo é compreendido de uma forma distinta pelos humanos, seguindo o condutor. Ainda bem que num cinema cada vez mais tomado pela celeridade tenhamos esse espaço para contemplar e pensar.

Filme assistido durante o 13ª Cinefantasy, em junho de 2022.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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