Crítica
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Sinopse
Manana, uma dona de casa de 50 anos, se vê diante de um dilema. Ela precisa escolher entre a vida em família ou o seu amor pela escrita, atividade que reprime há anos. Manana decide seguir sua paixão, mergulhando em um sacrifício físico e mental.
Crítica
Nascida na Geórgia, a diretora e roteirista Ana Urushadze realiza sua estreia em longas com um drama de tintas surrealistas que aborda os efeitos da opressão feminina, investigando também os meandros do processo criativo, não só como meio de expressão, mas como ferramenta de libertação. Em Scary Mother, a protagonista, Manana (Nato Murvanidze), é uma mãe de família de meia idade que decide dar vazão a um desejo reprimido há anos: se tornar escritora. Após meses de imersão completa na atividade, tendo o suporte do dono de uma papelaria – que considera sua escrita genial e se torna seu editor – ela decide apresentar sua primeira obra, ainda incompleta, ao marido Anri (Dimitri Tatishvili) e aos filhos. Contudo, o conteúdo perturbador, de forte cunho sexual, e aparentemente autobiográfico, gera um choque de grandes proporções, impondo a Manana o dilema da escolha entre a manutenção da estrutura familiar e a paixão pela literatura.
Situando grande parte da ação no conjunto habitacional de arquitetura robusta e fria, resquícios do regime soviético, onde Manana vive com a família, Urushadze imprime sem dificuldades uma atmosfera melancólica e soturna, em que os tons de cinza predominam sobre as outras cores, refletindo o estado psicológico da protagonista. Com olhar apurado para o registro dos espaços internos, a cineasta transmite também o senso claustrofóbico que a trama demanda, filmando os cômodos e corredores estreitos do apartamento de Manana através de frestas e portas entreabertas, utilizando a varanda do local como um ponto de respiro isolado. Tal sensação surge como consequência do cotidiano repreensivo vivido pela personagem, com os julgamentos constantes do marido sobre seu comportamento e aparência, bem como a falta de real apoio e simpatia do mesmo em relação ao seu futuro literário.
Por mais que Manana insista que o conteúdo do livro seja ficcional, o momento da leitura reveladora, com toda a família à mesa, configura uma ruptura a partir da qual se inicia o mergulho da personagem em uma espiral de eventos de crescentes características oníricas. As diversas fases dessa jornada, marcadas por uma avalanche de sentimentos, transparecem na ótima atuação de Murvanidze, que vai da introspecção à loucura, da profunda tristeza ao regozijo, sustentando uma imprescindível aura enigmática. Visando acentuar a noção de desorientação que toma conta de Manana, Urushadze explora o design de som, inserindo propositalmente ruídos desarmoniosos às cenas ou ainda elevando a trilha sonora de modo a quase encobrir os diálogos em passagens específicas. Através desses elementos, complementares ao seu rigor estético, a cineasta flerta com o terror psicológico na medida em que o comportamento de Manana se torna mais excêntrico e misterioso.
O fato de fazer anotações nos braços ou de enxergar imagens inexistentes nos azulejos do banheiro denota a inquietação da escritora, mas é mesmo a entrada no universo dos sonhos de Manana que faz com que a narrativa se entregue à sua faceta fantasiosa. No mais marcante desses devaneios, Manana afirma se transformar numa figura da mitologia filipina, uma espécie de vampira alada que sobrevoa a cidade durante a noite à procura de mulheres grávidas para devorar seus bebês. Urushadze apresenta a alegórica metamorfose de Manana nessa criatura, que evoca tanto a sede por uma nova vida quanto pelo ato criativo, vagando pelas ruas após abandonar sua toca – o quarto devidamente iluminado de vermelho, montado pelo entusiasta/editor nos fundos da papelaria, para que ela finalize seu livro.
É justamente na busca pelo desfecho do romance, que se confunde com a busca por se reencontrar como mulher, para além do papel de mãe e esposa, que Manana se vê obrigada a enfrentar o passado, revisitando outro papel, quase esquecido, o de filha, para completar sua transformação. No confronto final com o pai (Avtandil Makharadze), um tradutor que trabalha no livro de Manana, se mostrando ao mesmo tempo atordoado e fascinado pelo texto, inicialmente sem saber quem é o autor, Scary Mother explode em intensidade, trazendo um monólogo magnético que vai ao encontro das origens dos traumas formadores da personalidade da protagonista – o lar desfeito, a solidão, a tragédia. Um momento de indubitável força, e com a dose certa de ambiguidade, no qual Urushadze constata que a criação muitas vezes vem acompanhada da destruição, oferecendo a Manana não apenas a conclusão para seu livro, mas também o ponto final necessário para que possa iniciar um novo capítulo de sua história pessoal.
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