Crítica
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Sinopse
Numa estrada de terra, perto de uma plantação agrícola, um sujeito percorre o seu caminho, até se aventurar pela natureza. Em outras versões desta caminhada, ele efetuará percursos diferentes.
Crítica
A princípio, o espectador se depara com a imagem mais naturalista possível, próxima de uma captação documental. Enquadra-se uma estrada de terra em plano fixo, de onde chega, lentamente, um homem (Paulo Nazareth) caminhando rumo à câmera. Se Hace Camino Al Andar (2021) aparenta se debruçar sobre os prazeres do tempo presente e da duração dos processos, a exemplo do longo percurso efetuado pelo personagem, sem acelerações nem cortes. Além disso, existe algo fascinante na própria dinâmica do dispositivo ótico diante de imagens imóveis. Nossos olhos são preparados pelo cinema clássico-narrativo para seguir o movimento, enquanto nossa compreensão é pautada pela presença de conflitos. Quando estes elementos são ocultados, ainda que temporariamente, somos levados a nos questionar: mas o que está acontecendo, de fato? Quem é este homem? De onde vem, o que deseja? Por que caminha descalço, tendo as duas botas na mão? O que procura ao sair da estrada e se enveredar pelo mato? O filme solicita um espectador ativo, inquisidor. Enquanto isso, qualquer gesto se converte num grande acontecimento: quanto mais tempo passamos diante de uma imagem imóvel, maior será a tensão diante da mínima silhueta humana aparecendo ao longe.
Em paralelo, a banda sonora adquire contornos progressivamente interessantes. Paula Gaitán representa uma das cineastas brasileiras que utiliza o som de maneira mais expressiva, especialmente aqueles não sincrônicos, nem referenciais. Os efeitos sonoros começam a dissipar a aparência de realismo: somos confrontados a ruídos (seria o vento no microfone?), a sussurros, e então a falas de indígenas e sons de animais da floresta, não pertencentes àquele espaço. Enquanto o enquadramento continua preso à estrada, rigidamente preso a um tripé, o som viaja para outros espaços. Pela fricção entre som e imagem, cada retorno do Homem à estrada, cada movimento panorâmico mato adentro produz um significado e um estímulo diferentes. A diretora não trabalha apenas na chave da repetição cíclica, mas também na ressignificação, graças ao novo agenciamento sonoro a partir das mesmas imagens. Aos poucos, descobrimos a liberdade da câmera para girar sobre seu eixo. Depois, percebemos que ela pode efetuar violentos zooms rumo ao personagem que se distancia. O média-metragem muda suas regras ao longo do percurso, exigindo que o espectador se atente às possibilidades inéditas oferecidas pela direção. Através de um único cenário e um personagem anônimo, Gaitán cria um dispositivo tão dinâmico quanto inesperado. A partir de um mesmo ponto de partida (o percurso na estrada), o filme se bifurca a múltiplas perspectivas de ação.
Assim, o projeto se abre a diversas leituras, evitando tanto a condução fechada quanto a abertura ao acaso. A chegada de um trator agrícola pode sugerir uma batalha do humano contra a máquina, ou então a luta de um sujeito do campo contra a exploração agrícola de caráter industrial. A presença dos índios pode se opor à intromissão dos fazendeiros. Quando o último plano se encerra e nos deparamos com o black, os sons humanos e da natureza continuam. É igualmente possível ler a iniciativa enquanto manipulação conceitual do espaço-tempo: o homem se encontra à distância, porém ouvimos seus passos como se estivesse muito próximo de nós, pisando o cascalho ao nosso lado. A irrupção de uma trilha sonora violenta também sugere um embate iminente entre homem e trator, que o roteiro prefere evitar. Se Hace Camino Al Andar constitui um fascinante exercício de afrontamentos silenciosos, seja entre mundos, percursos e linguagens. Certamente, muitas outras leituras seriam possíveis a partir de imagens que, no entanto, jamais beiram a aleatoriedade: o dispositivo é coerente com a premissa de iniciar as cenas na estrada, efetuar um único movimento à direita e retornar ao ponto de princípio.
Aos poucos, para a nossa surpresa (mais uma), o corpo presente do homem sem nome também abandona a naturalidade, convertendo-se em performance, mesclando música, dança, happening e dispositivo cênico. Ele bate as solas das botas, criando ritmo; sussurra uma melodia (novamente, escutada como se estivéssemos a poucos metros dele) e improvisa movimentos de dança, até se entregar por completo a uma coreografia. É impressionante a capacidade deste curto filme em se reiniciar de novo e de novo, traçando sua narrativa particular e apresentando novas possibilidades de corpo e de câmera (ambos se libertando de suas amarras juntos, permitindo-se movimentações inéditas simultaneamente). De certo modo, a câmera e o corpo bailam a mesma dança, assim como Paula Gaitán e Paulo Nazareth travam seu próprio tango, em lados opostos do dispositivo cinematográfico. A diretora prossegue a busca por cinema tão potente no rigor das imagens quanto generoso na proposição de significados. É importante que os sons continuem quando não há mais imagem: o filme se prolonga na cabeça do espectador, levando-o a imaginar para onde vai o corpo dançante, e onde se termina a estrada. O término da narrativa não implica no fim da jornada.
Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.
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