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Sinopse

A vida e a obra de Roger Casement (1864-1916), considerado paradigmático quando o assunto é o inquérito sobre violações de direitos humanos. Suas ações em diversos continentes repercutem nos dias de hoje.

Crítica

Para quem não conhece o trabalho de Roger Casement, a ideia da representação de um massacre indígena pelo ponto de vista de um europeu branco pode despertar calafrios. Este olhar não seria intrinsecamente contaminado pelo colonialismo ou, no melhor dos casos, por uma percepção exótica da alteridade? Ora, Segredos do Putumayo (2020) faz questão de ressaltar o posicionamento muito distinto em relação aos conterrâneos: enviado especial à região amazônica no início do século XX, o irlandês registrou com espanto os inúmeros abusos cometidos contra os índios por parte dos exploradores de borracha. O projeto prepara o espectador para a quebra de expectativas desde os primeiros minutos, em ruptura com o documentário tradicional. Na maioria dos filmes sobre culturas distantes e antigas, a apresentação traz alguma forma de explicação didática via letreiros ou narração em off, para situar o espectador num contexto sociopolítico. No entanto, o cineasta Aurélio Michiles opta por um caminho mais interessante: somos apresentados inicialmente a uma sucessão silenciosa de imagens dos índios, sem nomes, datas nem lugares. A porta de entrada é o contato humano, o convite a nos identificar, ou talvez nos surpreender, com aquelas pessoas. Antes mesmo de serem classificados de alguma maneira específica, são vistos por seus corpos, sua rotina e sua cultura.

Em seguida, uma sequência ágil e fragmentada de fotografias rompe com a promessa do caráter expositivo. As inesperadas alternâncias de ritmo e estilo resultam numa experiência instigante, solicitando um posicionamento ativo do espectador. A utilização de materiais de arquivo transparece uma riqueza ímpar: o diretor articula imagens do passado com captações de cerca de 115 anos mais tarde, sem efetuar qualquer tipo de demarcação cronológica para preparar o interlocutor aos saltos temporais. Assim, o diário de Casament é associado tanto às fotografias e vídeos da época (com a granulação típica da película, ou com os riscos do material fotográfico deteriorado pelo tempo), quanto às sequências contemporâneas, contendo índios do século XXI cuja situação dialoga com a descrição efetuada pelo europeu. Desta maneira, o presente e o passado se retroalimentam, o que impede o projeto de se tornar uma mera constatação sobre um período que não existe mais. Michiles jamais perde de vista a Amazônia atual, algo que se torna ainda mais relevante durante um governo que se esforça em destruir as riquezas naturais e atacar as comunidades indígenas (mesmo que o filme tenha nascido muito antes da atual presidência).

De qualquer modo, o aspecto sisudo e escolar das narrativas históricas desaparece, porque podemos nos enxergar naquelas paisagens contemporâneas. Ao invés do teor explicativo, o documentário assume um caráter curiosamente melancólico. As poucas entrevistas com o escritor Milton Hatoum e o historiador Angus Mitchell cumprem a função de comentário, ao invés de se converterem em motor central da narrativa. Em outras palavras, o filme não precisa destas falas para avançar, porém as utiliza de modo a aprofundar um discurso estabelecido pelas próprias imagens. A Amazônia intercalada entre dois séculos é costurada pela narração do diário, lido por Stephen Rea. A presença do ator consiste numa das melhores escolhas do projeto: ele fornece um trabalho complexo de composição de personagem, evitando tanto a frieza da exposição objetiva quanto a sentimentalidade excessiva diante das mortes, torturas e estupros praticados pelos europeus. Rea sabe exatamente quando sublinhar alguma palavra e efetuar alguma pausa entre frases para efeito dramático, ou quando narrar certas passagens em tom desafetado. O diário adquire uma interpretação rica, mistura de apropriação e reencenação, ou ainda de imersão e distanciamento em outra época e ponto de vista.

Este fascinante percurso se encontra com a impecável direção de fotografia. Ao transpor todos os materiais ao preto e branco, diminuem-se as fronteiras entre as épocas, as texturas e os registros. Nota-se uma coesão estética excepcional para um documentário utilizando tantos fragmentos, captados ao longo de um período extenso. As entrevistas noturnas com índios, herdeiros dos trabalhadores escravizados do Putumayo, são efetuadas à noite, com um foco de luz intenso jogado sobre os personagens em meio à paisagem externa e escura. O efeito é dramaticamente potente, em plena sintonia com as falas de Hatoum e Mitchell, em estúdio, também posicionados diante de uma luz forte, sobre o fundo preto e infinito. Regula-se o contraste entre os registros para se atingir a fluidez entre passagens: as magníficas fotografias da época servem de transição orgânica às captações do presente. Michiles reforça assim a ligação entre os períodos, sugerindo a resiliência dos índios e a existência de formas contemporâneas de opressão exercidas sobre estas comunidades. A natureza e os personagens são captados por um registro de impressionante beleza, e também de aparência natural: nenhum cenário ou entrevista soa particularmente arrumado ou embelezado para as necessidades da câmera. Não se sente a presença excessiva de filtros e intervenções na pós-produção, como de costume nos projetos de valorização da natureza.

Infelizmente, algumas escolhas prejudicam a experiência. Em meio a uma construção estética tão refinada, a trilha sonora soa invasiva demais. Os tons operísticos e as melodias grandiosas adquirem um papel retórico diante da imagem: elas servem para apontar a tristeza de uma cena obviamente triste, ou a indignação em uma cena revoltante por si própria. Ainda que a trilha sonora surja em momentos pontuais, ela chama atenção excessiva a si mesma quando aparece, tratando de ficcionalizar o discurso e aproximá-lo do melodrama de ares hollywoodianos. Além disso, no terço final, o documentário sobre uma mudança significativa. Quando Casement abandona a região do Putumayo, o filme também o faz, retornando com ele para a Europa. Narra-se então as batalhas pela legitimidade de seu trabalho, o enfrentamento nos conflitos irlandeses etc. A conclusão insiste em tratá-lo como herói da causa indígena, num primeiro momento, e como mártir, num segundo momento. É óbvio que os relatórios de denúncias sobre a situação dos índios desempenharam um papel fundamental no destino destes, no entanto, o filme jamais destaca as lideranças indígenas que lutaram por si próprias, e que resistem ainda hoje. Os méritos da conquista são atribuídos unicamente ao protagonista, o que aproxima Casement do que se chamaria hoje de white savior, ou seja, o salvador branco. Mesmo assim, estes elementos não retiram os méritos de um documentário multifacetado, capaz de filmar pés humanos decepados na floresta junto do olhar melancólico das crianças, ou ainda os vídeos coloniais de encomenda em conjunção com as seringueiras contemporâneas, cuja seiva profundamente branca se contrasta com o cinza das árvores. O discurso se faz ao mesmo tempo assertivo, reflexivo e poético, articulando cuidadosamente as ferramentas da linguagem cinematográfica.

Filme visto online no 25º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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