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Crítica


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Sinopse

Alimentando o sonho de construir um hotel numa ilha deserta no sul do Chile, uma família viaja ao local ermo. Mas, seus membros acabam ficando isolados, sem provisões e com poucas expectativas de sobreviver. 

Crítica

Alfredo Castro e Paulina Garcia são, facilmente, dois dos maiores nomes do cinema chileno contemporâneo. Vê-los juntos em cena se compara, provavelmente, aos encontros de Fernanda Montenegro e Paulo Autran, ou Meryl Streep e Robert De Niro (ou Jack Nicholson, ou Al Pacino, ou Dustin Hoffman), por exemplo. Os dois já dividiram os créditos em diversas oportunidades – como na segunda temporada da série La Jauría (2022) ou no thriller A Cordilheira (2017) – mas nunca de modo tão intenso quanto o que se verifica em Segredos em Família. No longa escrito e dirigido por Jorge Riquelme Serrano (Camaleón, 2016) a dupla surge não como os protagonistas, mas a maneira como catalisam as atenções e roubam o interesse dos acontecimentos para si é o bastante para justificar o envolvimento da audiência, por mais que algumas opções assumidas pelo cineasta no comando do projeto jogue contra os esforços do elenco.

Com pouco mais de uma hora de projeção, a família formada pelo casal Alejandro (Gastón Salgado, de Ema, 2019) e Ana (Millaray Lobos, de Ninguém Sabe Que Estou Aqui, 2020), os filhos destes – Consuelo (Consuelo Carreño, de El Refugio, 2022) e Maximo (Andrew Bargsted, de Mis Hermanos Sueñan Despiertos, 2021) – e os pais dela (e sogros dele), Dolores (García, num misto de dissimulação e ferocidade) e Antonio (Castro, destilando repulsa), senta-se como uma meia-lua em torno de uma mesa (como apresentadores de um telejornal, que não chegam a completar o círculo por inteiro) para um jogo de tabuleiro, à noite. Estão cansados, o dia não foi fácil, as adversidades se acumulam, mas buscam nesse instante de descontração um pouco de divertimento e alienação dos problemas que enfrentam em conjunto. Essa pré-disposição à leveza e futilidades é frágil, como se propositalmente transitasse sobre uma fina camada de gelo. Não irá demorar, portanto, para que as primeiras rachaduras surjam. E, com essas, o castelo de cartas que aparentavam ostentar vem abaixo sem oportunidade de reconstrução. As feridas ficam expostas. E, como numa peça de teatro, a câmera não se mexe durante o ocorrido, sem registro nem mesmo de cortes de edição. Seria impressionante, mas quando a cena, enfim, se encerra, o observador atento irá perceber que se passaram exatos 10 minutos de tamanha exposição. O cálculo, por demais preocupado com a medição da forma, elimina a naturalidade que tinha tudo para fazer desse o ponto alto da trama.

Mas Serrano não se dá por vencido, e a essa passagem rapidamente dá sequência com outra, ainda mais revoltante e indigesta. O desconforto que gera, até aquele momento apenas sugerido – e de modo inteligente, sem grandes explicações ou gestos forçados, apenas insinuações e meias palavras – deixa de lado qualquer sutileza, apostando no explícito e gratuito. É como se a meia-hora final tivesse como único objetivo desconstruir o intrigante cenário planejado às minúcias durante os dois terços iniciais. Falta, portanto, confiança do realizador nos elementos por ele mesmo reunidos, além de uma maior certeza de que aos espectadores restaria perspicácia suficiente para depreender aquilo que até então havia ficado apenas no plano das alusões. A partida propõe um xadrez envolvente, não para mestres, mas exigindo algo a mais do que os níveis iniciantes estariam predispostos. É ao se encaminhar ao desfecho, portanto, que decide por trair a si mesmo – e àqueles instigados pelo quadro desenhado – investindo em escolhas óbvias, que privilegiam a provocação, sem as análises necessárias.

Se os tropeços, portanto, estão sob responsabilidade daquele que, supostamente, deveria demonstrar certeza na condução daquilo por ele mesmo orquestrado, aos atores (além dos seis citados, há apenas mais um, Nicolas Zarate) nem um porém poderá ser levantado. Curiosamente, são os dois que motivaram tal reunião que menos curiosidade despertam. Alejandro e Ana adquiriram recentemente uma ilha, nada majestosa, mas grande o suficiente para um hotel de descanso, ou mesmo um resort de férias, o que, de fato, ambos pretendem levantar a partir da velha casa que ali os abriga. O convite aos pais dela tem um objetivo claro: envolvê-los com o projeto, não apenas com frases de apoio, mas investindo financeiramente o valor que lhes falta para que suas ambições se concretizem. Aos mais jovens o envolvimento com as discussões dos adultos é quase circunstancial – ainda que a dinâmica entre os dois irmãos seja, no mínimo, pouco comum – enquanto que com os veteranos o inesperado, enfim, acontece. Antonio e Dolores formam um casal elegante e ciente do poder que emana, por mais que tente disfarçar essa força com falsa modéstia. No entanto, assim que seus calcanhares são pisados, se engana quem esperar por reações proporcionais. É no ataque que o pior irá surgir.

Quando o caseiro que proporciona os poucos luxos oferecidos aos recém-chegados – inclusive o transporte que os levou para tão longe do continente – desaparece, não irá demorar para o caos se instaurar. Mas esse virá pelos detalhes, como uma infiltração que vai corroendo sem aviso ou reviravoltas, mas, assim que se mostra incontornável, nada mais há a ser feito. Segredos em Família é, como se percebe, um título por demais genérico para o original Algunas Bestias. Afinal, as bestas que aqui se encontram, quando se percebem enjauladas, deixam claro a disposição em engolir umas às outras, se assim for preciso, em nome de uma garantia de permanência, por mais débil que essa possa ser. Tivesse Serrano demonstrado maior segurança na aposta que tinha em mãos, facilmente se teria aqui um discurso difícil de ser ignorado. Mas, ao pecar pelo excesso, frustra não apenas as expectativas levantadas, mas também a boa vontade dos que nele investiram seus olhares e reflexões. E se atrás das câmeras se tem um diretor inseguro do próprio potencial, ao menos há a garantia de que, em frente às lentes, se desenrola um embate de gigantes. Entre mortos e feridos, resta uma batalha digna de nota.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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