Sinopse
Crítica
O clima divisivo causado pelas tensões políticas parece se intensificar a cada dia em todas as partes do mundo. Na Espanha, a situação não é diferente, como revela o cineasta madrileno Víctor García León em Selfie, seu terceiro longa-metragem. Adotando o caminho da comédia satírica, e inserindo-a no formato do falso documentário, León expõe uma radiografia do momento atual de seu país através do olhar de Bosco (Santiago Alverú), um jovem de vinte e poucos anos, filho de um ministro e, portanto, pertencente à elite de Madri. Apresentado durante a festa de aniversário da namorada por uma equipe de filmagem que acompanha seu cotidiano, Bosco vê sua vida desmoronar no mesmo dia, quando o noticiário da TV informa sobre a prisão de seu pai, acusado de corrupção.
Expulso de casa pela justiça, ele se encontra completamente sozinho – a mãe retorna ao povoado natal, a irmã parte para Nova York com o noivo, a namorada o abandona, os amigos não o atendem, e até mesmo a renomada instituição onde cursava um MBA cancela sua matrícula – sendo obrigado a buscar refúgio no último lugar imaginado: o bairro humilde de Lavapiés, marcado pela diversidade étnica e cultural. O cenário se mostra ideal para a construção do choque de realidade proposto por León, pois, uma vez no local, Bosco se sente em um universo paralelo, sendo colocado também no epicentro da efervescência política da capital espanhola – já que o bairro abriga a sede do Podemos (partido jovem de esquerda formado em 2014).
Estreitando a distância entre as linguagens documental e ficcional, León registra a participação de Bosco em manifestações populares reais do Podemos, bem como em comícios do PP (Partido Popular), incluindo um encontro com Esperanza Aguirre, candidata da direita à prefeitura de Madri nas eleições de 2015. A imersão do protagonista no ativismo político abre espaço para que León trate de questões como a dos imigrantes e refugiados, rendendo sequências hilárias, carregadas de ironia, como o diálogo entre Bosco e um imigrante africano, com quem passa a dividir um apartamento, e que revela ter vindo para Espanha de avião. “Se eu fosse você, ao contar a história, diria que vim de barco. É mais comovente”, afirma o rapaz, com toda a seriedade do mundo.
Apesar de nunca justificar plenamente a presença da equipe documentarista – que chega a ser questionada por outros personagens, mas é aceita sem maiores problemas, soando particularmente improvável em determinadas passagens, como numa cena de sexo – a utilização do formato é fundamental para estabelecer a comicidade pretendida por León, na qual o insólito parece se integrar intencionalmente. A dinâmica das piadas, com Bosco falando diretamente para a câmera/espectador durante quase toda a projeção, potencializa o tom de constrangimento presente no humor, expondo também a personalidade odiável do protagonista – alienado, arrogante, preconceituoso. Nesse ponto, o trabalho do estreante Alverú é preciso, imprimindo uma naturalidade assombrosa a todas as atitudes absurdas de Bosco – um comportamento comum aos jovens de classe alta, familiar a qualquer público, inclusive ao brasileiro.
Uma sequência emblemática é aquela em que Bosco pede abrigo à antiga empregada da família, de origem latina, e levanta no meio da madrugada para “assaltar” a geladeira, comendo o iogurte dos filhos da mulher. Mas é mesmo no seu envolvimento com Macarena (Macarena Sanz), uma deficiente visual engajada em causas sociais, que reside o que, a princípio, soa como o aspecto mais condenável de sua conduta – e onde também se encontra o caminho para uma possível redenção. Sem saber da verdadeira identidade de Bosco, Macarena lhe consegue emprego num centro de auxílio a pessoas portadoras de necessidades especiais, além de moradia no apartamento de Ramón (Javier Caramiñana), amigo que nutre pela garota uma paixão não correspondida, e figura utilizada por León na representação de uma parcela da esquerda: conformada, de discursos inflamados, porém, de pouca ação. Justamente como Ramón (que diz estudar para mudar o mundo, mas passa os dias jogando RPG).
Oferecendo uma crítica generalizada a todos os lados, o cineasta deliberadamente evita a saída trivial da metamorfose de Bosco, já que o rapaz pouco aparenta se conscientizar, sendo o desenvolvimento do afeto por Macarena a única mudança genuína. A garota, por sinal, serve como símbolo da própria Espanha: dividida entre dois extremos que a desejam, sem conseguir enxergar suas verdadeiras faces. Essa é a constatação essencial feita por León em Selfie, a de que a cegueira coletiva domina o povo espanhol, que acredita estar tudo bem mesmo quando a realidade que os cerca escancara o contrário.
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