Crítica
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Sinopse
Munidos de seus smartphones, dois adolescentes retratam a violência dos subúrbios italianos. Abuso de autoridade policial, ação brutal da máfia, tudo é registrado pelos garotos.
Crítica
Um garoto filma a si mesmo. Ele mostra o bairro onde mora, seu apartamento, o melhor amigo. Então, chora diante das câmeras, quando lembra o assassinato do colega Davide, de dezesseis anos, confundido com um criminoso. Há algo estranho, no entanto, na configuração da imagem: a textura é impressionantemente nítida para uma selfie comum. O formato está na horizontal, algo pouco utilizado popularmente. Percebe-se a qualidade estética, uma preocupação em unir a estética da selfie com aquela do cinema. Aos poucos, estes adolescentes italianos revelam que ganharam os celulares de alta qualidade do diretor, sempre próximo dos dois, acompanhando o que eles decidem falar sobre si mesmos, espontaneamente. “Preciso continuar filmando? Meu braço está doendo”, reclamam. O cineasta está logo ao lado. Ele poderia segurar a câmera, se quisesse. No entanto, Selfie (2019) demonstra grande preocupação com a integridade de seu dispositivo. São os adolescentes que precisam filmar a si mesmos, com o ângulo que quiserem, na luz escolhida por eles, pela duração desejada.
Em determinado instante, os protagonistas Alessandro Antonelli e Pietro Orlando brigam entre si, decidindo se deveriam ou não incluir pessoas armadas e tiros para o alto. “Não quero isso no meu filme”, Alessandro argumenta. Aos dois garotinhos vaidosos que lhes pedem cigarros e buscam aparecer na gravação, respondem: “Se eu não gostar de vocês, corto na montagem”. Percebe-se a sensação de poder atribuída aos dois jovens de classe média-baixa, moradores de um bairro popular de Nápoles, marcado por fortíssima criminalidade. Um deles é garçom, o outro pensa em seguir com o curso de cabeleireiro. Eles ficam tristes ao constatarem que jamais terão uma casa bonita. Ora, a selfie tradicional, tirada com câmeras caseiras e de qualidade variável, não visa necessariamente se tornar cinema, nem funcionar enquanto obra de arte. A principal ousadia do diretor Agostino Ferrente consiste não no habitual gesto de se apropriar de selfies pré-existentes (como fizeram os brasileiros Gabriel Mascaro em Doméstica, 2012, e Marcelo Pedroso em Pacific, 2009), e sim anunciar a dois adolescentes que as selfies deles se tornarão uma obra cinematográfica. Eles passam a se enxergar como diretores onipotentes. Os garotos tão parecidos com quaisquer outros da região se tornam importantes, eles se distinguem, e se empoderam pelo registro documental de si mesmos. A arte adquire forte potencial político e simbólico.
Curiosamente, os rapazes não utilizam a câmera para construírem uma versão mais elogiosa ou divertida de si mesmos. Comovidos pela morte recente de Davide, retratam o lugar onde vivem sem qualquer forma de distanciamento geográfico ou crítico. Enquanto eles constituem a pura imersão, filmando as casas decadentes e os espaços públicos abandonados, a montagem garante o distanciamento necessário. Selfie possui excelente ritmo ao longo de 76 minutos, criando bruscas pausas seguidas por um black, como se nos oferecesse tempo para reflexão. Na maioria das cenas, os jovens contemplam a câmera, e a apenas a observam, em silêncio. O formato horizontal favorece o cenário ao redor, a paisagem urbana ao fundo. Eles choram de tristeza, transpiram pelo calor excessivo, esticam a duração dos planos por tédio. A forma, neste caso, torna-se conteúdo. Em paralelo, Alessandro e Pietro encaram a nós, espectadores. Estes rapazes que quase ninguém vê, vítimas de crimes não solucionados, nos forçam a encará-los sem qualquer rebeldia ou provocação. Muito pelo contrário, este é um filme de afetos. “É sobre a morte”, lembra um deles no primeiro minuto de projeção, numa fala arrepiante, antes de começar a chorar.
Este também é um projeto sobre a amizade entre os protagonistas, que cuidam um do outro como uma verdadeira família. Alessandro explica à câmera que Pietro engordou muito depois do assassinato, e assegura o amigo de ter a aprovação do pai deste. Eles se abraçam, trocam presentes, viajam juntos. Quando um deles não consegue subir a ladeira, o outro o espera, negando-se a deixar o amigo sozinho. Não há uma única imagem de criminalidade, de venda de drogas, de brutalidade policial. Ferrente transmite estes temas onipresentes pelas falas dos meninos, pelo panorama da cidade, e mesmo pelos rostos silenciosos. Assim, privilegia o impacto da violência na vida das pessoas à violência em si. Enquanto os rapazes filmam um ao outro, sonhando com um futuro melhor no qual nunca realmente creem, o diretor empresa o telefone celular a outros adolescentes, que seguram armas reais ou imaginárias, além de garotas descrevendo o futuro esperado, quando o marido estiver na prisão. Mas tudo bem, elas vão esperar por ele, porque isso é sinal de respeito. Mesmo que seja por vinte anos, claro. Há algo tão belo, no terreno dos afetos, quanto melancólico, no terreno político. Não há possibilidade de ascensão social para nenhum deles. Em suas falas, transmitem a certeza de que permanecer na cidade consiste em se envolver com alguma forma de crime. Mesmo assim, um traficante lembra que os criminosos dali não têm qualquer forma de luxo em suas rotinas. “São trabalhadores querendo colocar comida na mesa”, frisa.
Como se não bastasse a instigante fricção entre o documentário e a autoficção, o filme ainda compara a imagem das selfies com aquelas de câmeras de segurança. Elas se assemelham enquanto captações desprovidas de ambição ontologicamente artística, privilegiando o objeto representado ao meio de representação. Ao mesmo tempo, tornam-se opostas quando comparada a profunda subjetividade dos garotos filmando a si mesmos e a frieza das lentes grandes angulares captando qualquer coisa que lhes passe à frente. Por um lado, existe o mundo de escolhas personalizadas – Alessandro e Pietro filmam o que quiserem – e por outro lado, a falta de escolha sobre o conteúdo filmado. O cineasta conjuga os cenários retratados pelos jovens com aqueles apreendidos das ruas. Um universo separa a aparência policialesca das câmeras de segurança (tão frequentemente usadas em casos jurídicos como provas, evidências) e a aparência íntima dos amigos se provocando sobre o corte de cabelo, ou assistindo juntos às gravações do colega morto. Qualquer impressão de uma narrativa dotada de furor denunciativo, mais apegada aos fatos do que às pessoas, desmorona diante da sobreposição das câmeras de segurança ao vídeo-diário dos adolescentes sobre esta espécie de prisão a céu aberto.
Ferrente cria um pequeno grande filme, transparecendo delicadeza, além de senso ético e estético fundamental. Ele não se posiciona enquanto conhecedor íntimo das classes desfavorecidas de Nápoles, nem tenta falar em nome dos jovens. O cineasta tampouco se esconde por trás das imagens feitas por terceiros, evitando o risco de depender excessivamente do discurso que os garotos tenham a oferecer por si mesmos – como ocorre a tantos documentários, diga-se de passagem. O ponto de vista humanista está muito claro pela montagem, pelo ritmo de cada cena, pela duração dos planos, pelos atritos gerados na justaposição de cenas não-sucessivas. A escolha de acrescentar um único letreiro no final, ao invés de explicar o assassinato desde o começo, permite que o espectador não condicione a sua interpretação ao caminho sugerido por fatos, embarcando naquele microcosmo por meio dos olhares adolescentes. Selfie nunca vende “a verdade” sobre aquele espaço, apenas uma versão assumidamente subjetiva da experiência de crescer num ambiente de constante violência psicológica e física. Conhecemos o que os jovens pensam sobre si mesmos, mas também o que Ferrente pensa sobre eles, sem precisar de uma narração sequer, de uma única entrevista formal e acadêmica. Alessandro e Pietro contam a si próprios. Um deles, inclusive, adora um poema específico, jamais declamado ao longo do filme. Há o germe de uma poesia silenciada em cada cena.
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