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Crítica


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Sinopse

Mostra o cotidiano de trabalhadores de uma indústria que são tratados como escravos. Aqueles que tentam escapar recebem drásticas punições.

Crítica

O protagonista Pablito (Reginaldo Faria) é um trabalhador braçal embrenhado nos ervais do Brasil profundo onde a lei não alcança. Quem faz as normas nesse inferno lotado de homens brutos e mulheres tratadas como objetos sexuais são os exploradores que não aparecem no longa-metragem de Roberto Farias. Os que ditam as regras ficam subtraídos no extracampo, subentendidos como agentes que chegam ocasionalmente próximo daquele sítio somente com a intenção de ver se as coisas estão “correndo bem”. Desse modo, mesmo os mandatários locais, os capangas que cuidam para as normas dos patrões serem cumpridas geralmente à base do medo, não passam de emissários subalternos do capital, ou seja, abusados com algum nível de regalia, que existe apenas para eles terem uma ilusão utilitária de poder. Nesse cenário, Pablito ama Flora (Rejane Medeiros) e é amigo de Nitan (Jofre Soares). Quando os três são pegos num esquema de contrabando de erva mate, golpe que não passa despercebido pelos representantes da empresa latifundiária mandatária local, os três são capturados e a eles é imputada como penitência uma dívida quase impagável. Isso lhes coloca num lugar de escravidão. Selva Trágica, baseado no livro homônimo de Hernani Donato, é um mergulho num espaço insalubre em que tudo diz respeito à noção de propriedade. Inclusive as relações afetivas são mediadas por isso.

Roberto Farias opta por uma forma bastante tradicional para desenhar a feiura desse universo orientado pela exploração do homem pelo capital. Tradicional no sentido de colocar no centro da trama o amor sendo desorientado pelos agentes do caos vendido e comprado como ordem. Pablito e Flora tem um romance com potencial de abrandar a vida difícil nesses ervais onde as condições de subsistência são absolutamente precárias. O realizador cria uma ambiência muito convincente, embrenhando seus personagens numa mata densa que cria ao mesmo tempo a noção de labirinto e prisão. Em alguns instantes, as imagens resultantes da bela fotografia assinada por José Rosa têm atmosfera expressionista, vide aquelas em que o sol penetra pelas frestas das plantas criando algo plasticamente bonito. São vislumbres de raro lirismo que entrecorta a paisagem crivada de sofrimento. O casal principal é pego junto em flagrante, levado ao acampamento do grande capitalista que explora tudo aquilo, sendo obrigado a um trabalho exaustivo do qual não há promessas de usufruto. Ao lado de Nitan, são condenados a pagar uma dívida arbitrariamente imposta por seus captores, mas é a Flora que o fardo se mostra ainda mais pesado. Sim, pois nesse mundo selvagem em que a noção de propriedade é enxergada (adequadamente) como algo necessariamente violento, o corpo da mulher também tem dono.

A fragilizada Flora é tratada como se fosse mais um bem da empresa exploradora – cuja cegueira é representada pelo encarregado de olhos sensíveis à luz, ou seja, confortável com a escuridão. A Flora cabe a missão espúria de estar sexualmente disponível para tirar a tensão desses homens penetrados na mata em regime de escravidão. Trata-se de um círculo vicioso, visão apropriada para determinar os mecanismos de preservação da exploração capitalista. Mas, como citado antes, de maneira um tanto quanto tradicional, Selva Trágica se atém ao sofrimento de um mocinho e de uma mocinha que não podem ficar juntos em virtude das circunstâncias. É como nos filmes de guerra em que o horror da batalha é traduzido pelo impedimento do amor entre duas pessoas. Às vezes essa abordagem do bonito romance interditado sobrepõe as demais observações que o filme tece aos poucos, suavizando aquilo que poderia ser ainda mais áspero. Caso não fosse tão aferrado a essa ideia do casal impedido de ficar junto, Roberto Farias poderia ter feito um filme mais, digamos, herzoguiano, nos moldes das descidas ao inferno que o cineasta alemão Werner Herzog fez ao longo de sua prolífica carreira. O cenário é bastante propício para isso, afinal de contas, assim como em vários filmes de Herzog, aqui há uma terra sem lei em que a própria noção de humanidade vai esvanecendo diante da brutalidade das outras prioridades.

Por sua vez, Pablito é o herói romântico clássico, aquele que se concentra em proteger a amada enquanto tenta sobreviver num mundo do qual achava ter pleno controle. Por sua vez, Isaac (Maurício do Valle) é a força reguladora desse cenário hostil, o capataz do capitalismo que age supostamente apenas em prol do empregador, mas que na verdade está se ocupando da manutenção de um status quo exploratório da qual também é vítima. Caso tivesse um olhar menos voltado ao amor interditado, Roberto Farias talvez conseguisse deixar ainda mais fortemente subentendido que todos os personagens são vítimas. No entanto, a fim de acentuar a tragédia de Pablito e Flora como indício de um painel geral de sofrimento, ele cede à pressão da tradição romântica para criar figuras cuja maldade é quase total, justamente como Isaac. Interpretado com muita intensidade por Maurício do Valle, ele chega a personificar as barreiras impostas ao relacionamento do pobre casal protagonista. Se fosse menos romântico, relativizando às vezes o heroísmo de Pablito e a vilania de Isaac, quiçá um pouco mais atento à riqueza do painel criado nesse mundo de trevas, e o cineasta poderia ter ido além de fazer um romance com forte inclinação desesperadora. De todo modo, Selva Trágica tem méritos por apresentar o universo repleto de figuras indicativas do quão o capitalismo é selvagem e perverso.

Filme visto no 2º Bonito CineSur em julho de 2024.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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