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Crítica

Por mais avançado que o cinema brasileiro possa se encontrar – e, de fato, nosso cenário mudou drasticamente nos últimos vinte anos – há ainda algumas barreiras que seguem aparentemente instransponíveis. Uma dela diz respeito ao sexo e à exibição do corpo masculino. Justamente por isso, é quase inimaginável nos depararmos com um longa como Sauvage no cenário nacional – e mesmo hollywoodiano, se formos mais longe. Afinal, no drama do diretor Camille Vidal-Naquet sobre o cotidiano de um jovem de 22 anos que vive nas ruas tentando sobreviver como michê, este mergulho é profundo e sem volta desde o primeiro instante. Os pelos, os poros, a pele está à mostra e nunca gratuita, pois se cobra um bom preço por essa exposição. O mise-en-scène é tão bem elaborado e construído, com um cuidado até nos mínimos detalhes, justamente para criar uma ambientação de naturalidade e experiência. Como resultado, estamos diante de uma ficção, mas logo é possível esquecer dessa fina barreira, sendo o espectador levado a vivenciar a mesma dura realidade do protagonista, com todos os seus (poucos) altos e (muitos) baixos.

Após viver um dos jovens ativistas da causa LGBTQI de 120 Batimentos por Minuto (2017), Félix Maritaud volta ao universo gay em Sauvage como Léo, um rapaz que vende seu corpo diariamente na luta por um lugar ao sol. Na primeira sequência do filme, o acompanhamos durante um exame médico, no qual por orientação do profissional que o examina é obrigado a ficar sem roupa. O doutor está à procura de sinais de inflamação, mas antes de começar a lhe masturbar e praticar nele sexo oral – o que rapidamente descobrimos é que o encontro é mera encenação para agradar o fetiche de um cliente – ele repara no garoto hematomas e manchas escuras no seu torso. A tosse incessante é outra característica que termina por ser desprezada pelo homem mais velho, ávido por uma satisfação momentânea, decididamente sem verdadeiramente se preocupar com a saúde daquele que está lhe atendendo. Os machucados, por outro lado, fazem sentido: sem casa, amigos ou família, o jovem precisa contar com a sorte ou com algum tipo de agrado alheio para garantir o que comer, onde dormir ou o que vestir. Um esforço diário, que acaba por moldar a pessoa que se torna.

Léo, no entanto, faz o que sabe, e assim prossegue. É ingênuo, e por isso se mete em legítimas roubadas, como o casal que o trata como mero objeto, o cadeirante que não esconde a preferência por outro ou o cliente que não hesita em expulsá-lo sem nem ao menos pagar o combinado. É por isso que, mais do que um abrigo, uma refeição ou algo que o proteja das intempéries, o que precisa é de afeto e atenção. Exatamente o que parece encontrar em Ahd (Eric Bernard, de O Grande Assalto 11.6, 2013), que, aparentemente, se encontra em igual situação. Essa semelhança, no entanto, reside apenas na superfície. Pois Ahd está nessa apenas para negócio, não se envolve com clientes, se declara heterossexual – transa com homens apenas por dinheiro – e sonha em conquistar um senhor bem de vida que decida sustentá-lo em troca de favores sexuais. Enquanto o colega pelo qual se descobre cada vez mais envolvido é pura razão, Léo é seu oposto, agindo basicamente por instinto, desejo e emoção. Tanto que a relação entre os dois se dá acima de tudo porque o outro é o primeiro a notar a sua existência. O suficiente para que nesse desperte um sentimento próximo da paixão. Ou ao menos algo semelhante a isso.

Léo passa o filme inteiro em busca de afeto. Está cada dia mais doente, beirando uma tuberculose que pode ser fatal. Consulta-se com uma médica, mas mais do que ouvir seus conselhos e orientações, o que busca nela é um abraço. É assim, afinal, que aprendeu a viver: a partir de recompensas imediatas, pensando apenas no agora, no instante em que se encontra, sem cabeça ou condições para se preocupar com o amanhã. É justamente por isso que sofre tanto com as rejeições de Ahd, com os tropeços diários, com o descaso de todos. E quando se vê mais perdido do que nunca, nem o próprio corpo, única ferramenta que tem a seu dispor, parece ter importância ou significado. Ao bater com toda força no fundo do poço, o ponto positivo que lhe resta é que dali o único caminho possível é para cima. É quando ressurge, domado, pronto para se encaixar dentro de uma proposta de vida que talvez não seja a ideal, ou mesmo a que tenha sonhado nos seus momentos de maior ilusão, mas ao menos é uma que não apenas lhe é viável, mas também apropriada. A questão, neste ponto, é apenas uma: até quando essa farsa auto imposta poderá se sustentar?

Félix Maritaud oferece uma interpretação maiúscula como Léo, entregando-se por completo a um personagem desprovido de amarras ou redes de segurança. Ele está absolutamente mergulhado neste ser que é pura dor e carência, que exige pouco, ao mesmo tempo em que se revela disposto a oferecer muito mais do que lhe pedem. Porém, quem consegue lidar com aquilo além do esperado? É quando Sauvage mostra sua face mais real, dando um passo adiante da mera busca por atenção para indicar que há algo mais urgente e necessário para se sentir, enfim, pleno: liberdade. É quando deixa de olhar para os outros, em busca de algo que nem mesmo sabe identificar ao certo, e decide concentrar-se apenas em si. Assim, o filme de Vidal-Naquet surpreende pelo inesperado, revelando que se o todo funciona como um soco no estômago, o verdadeiro golpe vem destes momentos isolados que, quando juntos, se revelam maiores do que cada uma das suas partes. É o conjunto que grita por socorro. Para atendê-lo, basta abrir os olhos, e dar o passo que fará a diferença.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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