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Crítica


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Sinopse

Sofia e Ciro são dois jovens  estudantes de uma escola pública que apresenta uma série de precariedades. Diante de uma política nociva de reestruturação do ensino público, eles são convidados pelos colegas a fazer parte da resistência.

Crítica

Diante do movimento dos estudantes que ocuparam mais de 1000 escolas públicas Brasil afora em 2015, como forma de protesto contra uma reforma educacional arbitrária e grosseira, muitos aplaudiram a iniciativa dos jovens e também não foram poucos aqueles que os censuraram. E nos tempos atuais, regidos por redes sociais e outras ferramentas que apenas acirram as polarizações, é comum nos sentirmos cada vez mais confortáveis em nossas bolhas. Dentro desses espaços imaginários, apenas nos relacionamos com pessoas que pensam parecido conosco e assim excluímos aos poucos a contrariedade, limitamos as relações e podemos inviabilizar debates sérios, potencialmente transformadores. Um dos grandes méritos de Selvagem é partir da ideia fundamental de que é necessário tentar minimamente furar essas bolhas e enxergar o mundo também a partir de outras perspectivas. Para isso, seus protagonistas não são os secundaristas mais politicamente engajados na batalha, os que percebem imediatamente a importância de lutar com as armas possíveis contra um sistema excludente. Partindo do roteiro escritor por Vinicius Cabral, Vitor Drumond e Gabriela Gois, o cineasta Diego da Costa prefere contar a história pelo prisma daqueles que ainda têm dúvidas, dos que não são movidos por uma convicção inabalável. Isso permite ao filme apresentar quase pedagogicamente certas etapas, observar de perto as lições que dois jovens um tanto alienados vão aprendendo com a mobilização estudantil.

Ciro (Kelson Succi) é um adolescente sensível que está mais preocupado com suas poesias e/ou tomado pela paixonite sentida por Sofia (Fran Santos) do que necessariamente consciente do quão nociva pode ser essa reforma educacional. Já Sofia tem ainda mais relutância diante do movimento estudantil arquitetado rapidamente pelos colegas como forma de resistência. Ela está mais preocupada em suportar a opressão de um ambiente doméstico orientado pelo machismo do pai que, ao que tudo indica, possui um pensamento mais conservador. Ainda que Selvagem não torne tão intensa ou mesmo densa essa trajetória de mudança – e ela é certa, pois o filme começa nos mostrando que os dois adolescentes estão na frente de batalha –, é importante que estejamos inicialmente acompanhando de perto os que duvidam. Com isso, Diego da Costa (e os roteiristas) não fica apenas reforçando a própria opinião elogiosa a respeito de um movimento de cunho histórico que teve efeitos práticos e demonstrou a importância da desobediência civil. Seria muito mais simples ter como protagonista a jovem Mirela (Érica Ribeiro), a líder que rechaça a concepção de liderança por ter uma consciência social já bastante estabelecida. Seria mais simples, mas acabaria solidificando a ideia da bolha social, ou seja, de alguém admirado por ter uma conduta/lógica semelhante a do público-alvo. Uma vez que abre espaço às controvérsias, às hesitações e confusões, o realizador torna os personagens menos planos.

Tendo em vista essa necessidade urgente de furar a bolha, Selvagem mostra Ciro praticamente sendo obrigado pela mãe a tomar algum tipo de partido na luta dos colegas, enquanto Sofia é confrontada por amigas que acham absurda a sua preocupação com a prova do Enem quando a própria educação pública está em jogo. E mesmo que haja diversas simplificações, que alguns diálogos soem um pouquinho didáticos demais, o filme tem um ótimo potencial de comunicação com diferentes públicos. Isso, mesmo nunca escondendo de qual lado está: o do elogio à concepção da escola como um direito fundamental de todos. Diego da Costa torna fluídas as discussões entre os jovens, fazendo questão de enfatizar que não é apenas sobre educação que o filme está tratando, mas também a respeito de outras revoluções de base que precisam ser feitas na sociedade. Em meio ao percurso de conscientização de Ciro e Sofia, temos discussões sobre a predisposição dos homens a reivindicar o protagonismo (vide o menino que interrompe as meninas); a urgência da participação popular nas transformações sociais (vide o levante dos secundaristas); as estruturas hegemônicas que muitas vezes turvam a visão dos oprimidos (vide o pai de Sofia, um desempregado pobre com discurso elitista); e a deturpação da imprensa comprometida (vide as reiteradas tentativas de tipificar as ocupações como invasões e afins). E há soluções muito engenhosas, como o descompasso sonoro entre a marcha da polícia e o grito de guerra, uma forma puramente auditiva de demonstrar a ação do Estado comprometendo a harmonia popular.

Além dessa variedade no discurso, o filme possui personagens coadjuvantes bem apresentados e situados por meio de ações simples e pequenos discursos que sintetizam suas personalidades. Selvagem também contrapõe a direção da escola (conservadora) a alguns professores que compreendem também como sua a reivindicação justa dos alunos. Entre os intérpretes dos docentes, podemos destacar a experiência de Lucélia Santos e o desempenho do rapper Rincon Sapiência como uma figura de referência que ajuda os aprendizes a separar o joio do trigo. Diego da Costa dilui os passos das mudanças de Ciro e Sofia. Principalmente ela não tem um momento único de epifania no qual é transformada de água para vinho. Sofia é praticamente levada pela corrente de afetos e paixões do cotidiano da ocupação. Já ele tem uma fala quase desnecessária que demarca a mudança, uma verbalização repentina da noção tardia de fazer parte do coletivo pensante com capacidade para alterar positivamente as coisas. O realizador aproveita bem os espaços da escola e, mesmo que reitere conflitos sem variações (o de Sofia com o pai é um deles), permanece fiel a essa pegada ao mesmo tempo funcionalista da ocupação (pois sabemos relativamente bem como ela funciona) e ainda dá vazão às dúvidas dos protagonistas que chegam a colocar em xeque aquilo. Selvagem opta por uma linguagem direta e sem muitas firulas para discutir tópicos controversos a partir de pessoas que não aderem imediatamente ao movimento. E esse gesto de convidar os de fora da bolha para o debate é essencial, ainda que a resolução não traga uma reflexão condizente sobre a tentativa de pensar fora dos casulos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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