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Crítica


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Sinopse

No verão de 1996, numa vila pesqueira de Maceió, Tamara está aproveitando as últimas semanas antes de partir para estudar em Brasília. Um dia, ouve falar de uma adolescente que recebeu o apelido de “Sem Coração” por causa de uma cicatriz que tem no peito. Aos poucos irá começar a desenvolver uma atração crescente por essa garota misteriosa.

Crítica

Tamara (Maya de Vicq) é a típica personagem dos filmes de amadurecimento (chamados nos Estados Unidos de coming of age). Em Sem Coração, a encontramos no limiar entre a adolescência e a vida adulta, mais precisamente prestes a deixar a paradisíaca praia alagoana de Guaxuma, onde nasceu e criou raízes profundas, para começar a sua trajetória emancipada em Brasília. Há um contraste implícito entre presente e futuro, tendo em vista as diferenças gritantes entre a natureza exuberante do litoral nordestino e a geografia milimetricamente arquitetada da cidade no planalto central. Os diretores Nara Normande e Tião enfatizam a liberdade que a protagonista e seus amigos possuem nesse espaço visualmente exuberante prestes a ser deixado para trás. Tamara tem poucas cenas com os pais (interpretados por Maeve Jinkings e Erom Cordeiro) e mesmo nelas sobressai uma sensação de que a menina tem enorme autonomia para andar por aí, curtindo experiências como beber enquanto transita de carro com os amigos, brincar mergulhada no oceano, vagar nos prédios em decomposição por molecagem e até mesmo invadir a casa dos vizinhos viajantes por pura diversão em grupo. Nara Normande cresceu nessa região, mais ou menos no período em que se passa a história (anos 1990). Então, não à toa a nostalgia é uma espécie de sentimento mediador dos eventos e dos elos humanos.

Tamara não é o tipo de protagonista centralizadora. Nem tudo de importante no filme acontece com e por ela. A menina faz parte de um bando de amigos que revela aspectos distintos de uma juventude prestes a ser transformada pela necessidade de cruzar a fronteira da vida adulta. Nara Normande e Tião desenham esse coletivo como uma segura bolha de afetuosidade e compreensão, dentro da qual não há espaço para julgamentos. Por exemplo, em nenhum instante os pais de Tamara implicam pelo fato de ela perambular com o amigo recém-solto da instituição de encarceramento de menores. Aliás, Galego (Alaylson Emanuel) é a figura mais trágica de Sem Coração, aquele que existe em toda a sua complexidade para mostrar os efeitos nem sempre positivos de abandonar a meninice forçado por circunstâncias alheias à sua vontade. Em certa medida, ele se assemelha ao personagem de River Phoenix em Conta Comigo (1986), também por ser vítima de violência doméstica e assumir precocemente atitudes adultas para se desvencilhar da infância/adolescência. Portanto, alguns forçam a transição para tentar se salvar.  Aliás, o filme dirigido por Rob Reiner deve ter servido de inspiração aos diretores, vide as semelhanças de tom e as entre os grupos se aventurando antes da separação imposta pelo amadurecimento. Também porque amigos se deparam com mistérios convidativos em ambos.

No caso de Sem Coração, o mistério é personificado pela menina que essa turma chama de Sem Coração (Eduarda Samara), alguém que vemos transitando pela paisagem sobre uma bicicleta e que, segundo boatos, teve o coração defeituoso trocado por uma máquina encarregada de bombear seu sangue. Em torno dela, há um mito. Tamara fica fascinada pela menina, sempre a acompanhando com miradas particularmente interessadas. Evidentemente, ela se sente atraída por essa garota que, como vemos, mora com o pai pescador. Nara Normande e Tião constroem com muita sensibilidade o interesse profundo que Sem Coração desperta em Tamara, expressando esse fascínio por meio do encantamento do olhar. Outro detalhe interessante é a posição de Sem Coração diante do grupo de Tamara. Convidada a fazer certas atividades, a menina hesita em se misturar, como se tivesse receio ou não se sentisse pertencente àquela patota. Existe um jogo de aproximação e distanciamento que demarca o exílio da garota que talvez não se sinta confortável em bando por conta do costume com a solidão. Mas, também há algo que descobrimos adiante sobre a relação de Sem Coração com os garotos do bando, uma espécie de mentoria sexual, revelação que apenas aguça a curiosidade de Tamara por ela. Aliás, a exploração da sexualidade é uma força mobilizadora nessa história de tonalidades quentes.

Nara Normande e Tião evitam gestos e diálogos desnecessariamente expositivos, criando uma atmosfera repleta de sugestões e hesitações, marcada também por pequenos contrastes e atravessada pela nostalgia. Dentro dessa bolha protetora que envolve a protagonista, todos são livres para expressar as suas respectivas singularidades. A sexualidade nunca é enxergada como problema. Então, experimentar-se ao lado dos amigos em nenhum momento é encarado como algo problemático, muito pelo contrário. Pontualmente, os diretores nos mostram que esse santuário criado pela amizade que une adolescentes de classes sociais diferentes (embora isso seja enfatizado apenas na dura que eles levam do vizinho) não é uma redoma indestrutível, pois está à mercê da brutalidade exterior. Os homofóbicos que espancam o menino e o homem que renega o filho, o agredindo como se fosse seu direito paterno fazê-lo, são demonstrações dessa realidade feia que rompe a membrana protetora criada espontaneamente pelos jovens para se defender em conjunto. Sem Coração é um filme marcado por saudades: a da liberdade exercida plenamente na juventude, a das pessoas que perderam suas inocências ou mesmo suas vidas para a aspereza do mundo, a de um tempo menos digital feito de experiências reais, a de certa inocência que permitia excitantes voos cegos. Tudo num filme que antagoniza a beleza natural e a obsolescência das edificações em ruínas em prol da tensão entre o que permanece ou não.
Filme visto durante a 25º Festival do Rio (2023)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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