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Crítica


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Sinopse

Ao sofrer um acidente de carro, um médico forense fere um garoto de 8 anos. Ele se oferece para levar a criança a uma clínica próxima, mas o pai dela recusa sua ajuda. Na manhã seguinte, no hospital onde trabalha, o doutor descobre que o menino aguarda por sua autópsia. Ele, então, enfrenta um dilema: é o responsável pela morte da criança devido ao acidente, ou o garoto morreu de intoxicação alimentar, de acordo com o diagnóstico de outros médicos?

Crítica

Embora o doutor Kaveh (Amir Aghaee) seja efetivamente o protagonista de Sem Data, Sem Assinatura, Moosa (Navid Mohammadzadeh) divide com ele um espaço dramático, o da tortura oriunda da culpa. O encontro deles é fortuito, num incidente de trânsito aparentemente sem grandes consequências. O médico, ao desviar-se da manobra perigosa de outro automóvel, esbarra na motocicleta da família do homem humilde. O primeiro tenta providenciar ajuda, porém negando-se a envolver a polícia no ocorrido. O segundo, indignado com a imprudência alheia, aceita um valor compensatório, mas não encaminha um dos filhos feridos ao hospital, conforme orientado. O menino morre. Um passa a ser corroído, já que pairam dúvidas sobre a causa do óbito, se por botulismo ou em virtude do trauma. Já o outro reage ferozmente. O drama dirigido por Vahid Jalilvand acompanha esses dois sujeitos duramente afetados pelo episódio, estudando, inclusive, os efeitos nefastos das mentiras e dos não ditos.

Diferentemente de outros filmes iranianos relativamente recentes, como A Separação (2011), Sem Data, Sem Assinatura não parte de uma conjuntura pontual para analisar a sociedade iraniana. Por certo, há muito das particularidades locais na configuração das respostas das pessoas aos eventos controversos da trama, mas nada que se detenha fortemente, por exemplo, em como a religiosidade afeta a percepção moral de ações e reações. O foco permanece constantemente na maneira como os indivíduos lidam com a responsabilidade por seus atos. Kaveh não consegue se desvencilhar da sensação de que deve fazer algo para amenizar os frutos do acontecimento. Ele é desenhado como um homem essencialmente ético, que sequer fraqueja diante da possibilidade de colocar em xeque a própria responsabilidade na morte do menino. Já o pai enlutado entra num processo de autoflagelo, pois acredita que a intoxicação do filho veio da carne de segunda comprada por necessidade do fornecedor suspeito.

Ainda que sejam de mundos completamente diferentes, Kaveh e Moosa são atingidos pela brutalidade de um evento supostamente corriqueiro. Sem Data, Sem Assinatura demonstra os desdobramentos inesperados de atitudes pretensamente banais, ressignificadas como negligência ou imperícia a partir das implicações. Mais um dado que aproxima os homens, a forma como são frequentemente confrontados por mulheres imediatamente próximas. O médico, pela colega que questiona, inclusive, sua obsessão pelo caso. O pai de família, pela esposa que expõe todas as suas mágoas e ressentimentos. A câmera permanece interessada nas filigranas, nos pormenores das condutas de todos os envolvidos, numa encenação acrescida de vigor pela ótima interpretação do elenco, sobretudo as de Amir Aghaee e Navid Mohammadzadeh. A diferença das classes sociais de seus personagens, no entanto, não é investigada pelo realizador. Ele pretere esse dado importante em função do painel íntimo.

Sem Data, Sem Assinatura se expressa muito consistentemente, a partir de um roteiro que se encarrega de incutir no espectador mais dúvidas que certezas. Mesmo não sendo tão complexo quanto alguns congêneres igualmente laureados em festivais internacionais, ele apresenta dilemas pungentes o suficiente para delinear duas tragédias pessoais caminhando paralelamente. A resolução dúbia, incerta, é questionável, especialmente por oferecer a possibilidade de uma redenção ao médico, como se a bondade fosse capaz de expurgar os pecados. A Moosa, que perde espaço a partir de dado momento capital do longa-metragem, resta aguentar as decorrências dos reflexos, bons ou maus, de quem tem mais prestígio na coletividade. O cineasta não investe nessa observação que, então, surge quase espontaneamente, mas sem um viés crítico que possa lhe conferir a relevância devida. Ainda assim, permeado pela morte de um inocente, o filme é bem-sucedido como conto moral.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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