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Sinopse

John Kelly tem sua família assassinada por um esquadrão de soldados russos. Durante sua jornada para obter vingança, ele involuntariamente expõe uma conspiração que ameaça envolver os Estados Unidos e a Rússia em uma grande guerra.

Crítica

Para a indústria audiovisual, a pandemia de Covid-19 provocou mais do que o fechamento das salas de cinema e a limitação do número de estreias: ela também afastou o público médio dos blockbusters. Os grandes produtores, preocupados com a baixa perspectiva de retorno durante o isolamento social, adiaram seus principais títulos até as multidões voltarem às salas escuras. Em consequência, tivemos um ano de 2020 praticamente destituído de super-heróis, aventuras intergalácticas, perseguições e efeitos especiais. Esta foi a primeira vez, em mais de 15 anos, que as produções formatadas sumiram do topo dos rankings anuais. Curiosamente, foi preciso apenas um ano de distância para que seus códigos, tão naturalizados na cultura popular, se tornassem ainda mais artificiais. Esta sensação vem à mente diante das primeiras imagens de Sem Remorso (2021), produção que se veria habitualmente nas telas do cinema, no bom e no mau sentidos do termo. Por um lado, nota-se o investimento em tiros, explosões e atos de bravura nos primeiros cinco minutos de duração. Mocinhos eliminam dezenas de inimigos sem esforços, comprovando a tática imbatível do exército norte-americano. Por outro lado, quando tudo é espetáculo, nada o é: se o espectador pudesse parar por um minuto para respirar, perceberia o quão absurdas são as situações. Por isso, o projeto o impede de parar: há granadas e snipers a cada esquina.

O projeto causa estranheza não apenas por resgatar o show da violência após um ano de ficções intimistas, mas também por sua relação anacrônica com o gênero da ação. O diretor Stefano Sollima adota uma abordagem semelhante àquela dos projetos criados para Charles Bronson, Bruce Willis ou Steven Seagal nos anos 1980: com brutalidade e um senso de virilidade típico de gerações passadas. Ora, as produções do século XXI passaram a assumir o humor absurdo das situações, rindo de si próprias (vide a saga John Wick), expandido a sexualidade dos heróis (a exemplo da bissexualidade de James Bond) e permitindo a noção de protagonistas frágeis ou falhos (caso de Dupla Explosiva, 2017). Em contrapartida, nada disso acontece na seríssima adaptação de Tom Clancy. A narrativa se conduz com o comprometimento de quem acredita estar transmitindo valiosas lições de vida, enquanto o protagonista, John Kelly (Michael B. Jordan), constitui um militar unicamente bom: ele é corajoso, forte, pai gentil, marido amoroso, compra briga contra chefes em nome de um bem maior, jamais hesita em seus propósitos. O cinema volta à idealização de um poderio militar norte-americano patriótico, movido por incorruptível senso de justiça.

Em linhas gerais, a premissa corresponde àquela adotada por centenas de filmes de ação tradicionais: homem puro tem sua esposa e filha assassinados, decidindo utilizar todas as armas necessárias para se vingar dos responsáveis. Os roteiros sempre buscam uma justificativa mínima para legitimar a carnificina: visto que o herói perde a esposa grávida, tem as vias abertas para matar quem quiser, quando quiser, sem impedimentos morais. As vias legais sequer são cogitadas: trata-se de um militar que resolve seus problemas sozinho, à base de socos e tiros. O ataque contra o “homem de família” proporciona a desculpa mais simples para que o espectador torça por John, e jamais se incomode com o extermínio de pessoas sem qualquer envolvimento no crime. Este sujeito está descontrolado, passional, e portanto precisa ser desculpado por seus atos. A fúria surge como prova de amor e integridade: o sujeito vingativo só perde os rumos e sai atacando uma organização perigosa porque amava de verdade a esposa e a filha. Em outras palavras, um pai deveria ser aquele capaz de iniciar uma guerra para atestar sua condição de provedor e protetor. Há muito mais em jogo do que a dinâmica de crime e castigo: o filme promove uma volta à noção de honra masculina.

O reacionarismo vai além de ideologia, implicando também num posicionamento estético. Sem Remorso oferece todos os tiques e convenções do “cinema brucutu” comum ao programas da televisão aberta no domingo à noite. Os inimigos, é claro, são russos, com sotaques fortes e carrancas malvadas. Já os americanos brutos (caso do chefe interpretado por Jamie Bell) serão desculpados, afinal, seus excessos foram motivados pelas provocações do adversário. John se livra sozinho de dezenas de homens armados, resiste sem reclamar a ferimentos graves, lidera equipes graças a seu instinto natural de comando, e acima de tudo, profere um sem-número de frases de efeito. “Vocês vão precisar de alguém como eu. E não tem ninguém como eu”, “A morte me segue por onde eu vou” e “Tudo o que precisamos fazer agora é morrer. Mas nós não vamos fazer isso” são algumas das pérolas disparadas pelo protagonista e os companheiros de aventura. Enquanto atira, soca, chuta, pula, lança granadas e bombas, John faz prova de resiliência, pois motivado pelo inesgotável amor familiar. Ele se transforma num homem-músculo, homem-máquina, que atira primeiro e faz perguntas depois. O herói recebe poucas oportunidades para manifestar sua tristeza em relação à esposa, porque o choro é incompatível com os machos. Machos contra-atacam.

Sollima conduz as cenas de ação em ritmo arrastado, evidenciando problemas de edição – vide o tiroteio entre dois prédios e as duas fugas subaquáticas. Estas sequências são escuras demais, talvez para facilitar a tarefa da equipe de direção de arte e efeitos visuais. Michael B. Jordan demonstra visível comprometimento com este herói da literatura, ao ponto do excesso: talvez outros atores soubessem brincar com ambiguidades e respiros. John Kelly se converte num herói genérico, sem características específicas na história pregressa, no modus operandi (ele sequer possui as “habilidades especiais” de Bryan Mills ou John Wick) ou na maneira de agir e falar. O herói representa o arquétipo da masculinidade e do heroísmo, algo talvez interessante quando finalmente oferecido a um ator negro, ainda que esta seja a única, e discreta, subversão da fórmula. O resultado se contenta em reunir passagens obrigatórias da ação oitentista, sob medida para os fãs nostálgicos (tanto desta forma de cinema quanto desta visão de mundo). O fato de ser lançado diretamente via streaming, dentro de lares desprovidos do equipamento de som e projeção de uma sala de cinema, pode ser lido enquanto sintoma: este tipo de obra realmente não se adequa ao mundo de 2021.

 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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