Crítica
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Sinopse
Sem Ursos conta duas histórias contadas simultaneamente. Em ambas, os amantes são afetados por obstáculos e impeditivos. No meio disso, um cineasta tem a sua liberdade cerceada enquanto tenta dirigir remotamente seu novo filme.
Crítica
Desde que se tornou persona non grata pelo regime autoritário do Irã, o cineasta Jafar Panahi tem feito um cinema pautado por signos de resistência. Em Isto Não é um Filme (2011), refletiu sobre as dificuldades de criar uma obra diretamente da prisão domiciliar. Em Taxi Teerã (2015), o deslocamento pela capital iraniana constituía um gesto calculado de desobediência civil, em prol da construção do painel humano da metrópole pela qual era impedido de circular livremente. Já seu mais novo filme guarda importantes semelhanças com o imediatamente anterior, 3 Faces (2018), por conta da localização num vilarejo em que a tradição atua de modo estruturalmente opressor. Nesse sentido, Sem Ursos ajuda a formular um painel coeso se somado aos demais longas pós-sentença. E isso se dá também pelo mergulho de cabeça na fértil indefinição entre ficção e realidade. Outra coisa que sustenta essa ideia de continuidade é a autorrepresentação, pois Panahi novamente se interpreta dentro de situações propícias à elaboração de críticas manifestadas em meio a supostas trivialidades. Aqui, ele está confinado numa aldeia próxima à tensa fronteira do Irã com a Turquia. Ora, um homem impedido pelas autoridades de sair do país flertando com a esperada subversão da sentença que lhe foi imposta naturalmente gera tensão. Ele está lá para acompanhar remotamente a rodagem do novo filme.
Jafar Panahi elabora habilmente uma narrativa bifurcada, caracterizada pelo andamento paralelo de enredos interconectados. Em um deles, vemos o diretor cerceado em contato com os aldeões e, no outro, a produção do filme sobre um casal que deseja escapar à Europa em busca de dias melhores. À moda do Neorrealismo Italiano, movimento de vanguarda tão importante como inspiração à renovação do cinema iraniano, é perceptível o empenho da câmera a fim de registrar costumes, gestos e demais protocolos que nos ajudem a perceber a constituição de uma cultura alimentada por machismos e dogmas religiosos. Ghanbar (Vahid Mobasheri), o senhorio do protagonista, se dirige ao forasteiro de modo servil, assim aludindo ao imaginário que estabelece hierarquia entre os habitantes “estudados” das grandes cidades e os residentes humildes das “atrasadas” localidades interioranas. Tanto que o desfecho da subtrama envolvendo o amor do rapaz pela jovem prometida a outro pode, também, servir para sinalizar essa distância entre aqueles que evadiram da terra natal em busca de oportunidades de crescimento e os que persistiram (por vontade ou necessidade) em suas províncias de origem. No entanto, Panahi, ele próprio, se mostra indisposto com a ideia de sair do Irã, assim oferecendo outros aspectos ao dilema fundamental entre permanecer e abandonar suas raízes.
De certa forma fazendo um aceno a Blow-Up: Depois Daquele Beijo (1966), o cineasta recicla a ideia de uma imagem que pode servir para comprovar algo considerado criminoso. No longa do italiano Michelangelo Antonioni, o fotógrafo de moda supunha ter flagrado o indício de um assassinato. E isso o consumia dentro de um processo íntimo. A utilização da imagem por Panahi parte de outro aspecto e ocasiona um movimento praticamente contrário. Primeiro, diferentemente do que acontece produção dirigida por Antonioni, não enxergamos a fotografia reivindicada pelos moradores locais como prova de adultério. Sequer sabemos se o clique realmente aconteceu, se Panahi está mentindo e simplesmente apagou o arquivo da câmera digital. O testemunho do menino que garante a existência do retrato é parcialmente corroborado por uma cena anterior e suas coincidências com as palavras da criança, mas nada que sirva para esclarecer as diferenças de versão. Segundo, porque o cineasta não entra em crise pessoal pela eventualidade do “crime” praticado e, talvez, capturado pelas lentes. É o seu entorno que ferve diante da transgressão. Panahi é um personagem atravessado pela existência de leis que a ele não fazem muito sentido – algo que pode ser encarado como comentário a respeito da condenação real que o encarcerou e, em tese, o proibiu de filmar por duros 20 anos.
Sem Ursos cria curtos-circuitos entre realidade e ficção, aparentemente como se os alternasse em camadas de acordo com a demanda dramática. A abertura com um casal discutindo sobre a evasão do país é denunciada como filmagem. Adiante, Zara (Mina Kavani) rompe a ilusão e acusa Panahi de trair fatos. Todavia, estamos diante de uma atriz interpretando Zara. Verdades e/ou mentiras? A que ponto o tecido ficcional é feito de eventos e/ou intenções autênticos? O realizador faz dessa curiosidade uma parte importante do processo de investigação ao qual convida o espectador, evitando assim de oferecer respostas definitivas num percurso mais ditado pelas indeterminações e indecisões do que pelas certezas. Dentro do caráter especulativo que cabe à abordagem crítica das obras de arte, podemos imaginar que Jafar Panahi cria esses duplos ficcionais para encarar com tintas de invenção os absurdos normalizados factualmente (como a condenação kafkiana da qual é vítima). De toda forma, o realizador do filme é arrolado na tradição alheia. Como resposta, tem um gesto de extrema ética: jurar diante do que lhe é sagrado (a câmera) e validar o testemunho por meio das próprias convicções sem ofender as do outro (alcorão) com falsas reverências. Desrespeito seria jurar por algo que não o representa. E Panahi encerra o filme de modo trágico, respeitando a aspereza de uma realidade obscurantista.
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Excelente critica. Ajudou muitissimo a entender o filme