Crítica

As famílias felizes têm pouco a dizer. É assim que Liev Tolstói abre Anna Karenina, um dos marcos da Literatura. O mesmo caminho seguiu um dos gigantes de Hollywood, Billy Wilder, para o seu filme de estreia. Henri Pasquier é um jovem afortunado de cuja felicidade e riqueza não podemos desconfiar. Só lhe faltava uma buzina, nos diz Wilder no tom satírico que marcará a sua obra.

A boa vida de Henri (Pierre Mingand) se mantém até que o pai, um renomado médico francês, desiste de sustentá-lo. De pronto, corta todas as facilidades do filho. Desprovido das regalias, o jovem ingressa em uma organização que rouba carros. A tática não é nada sofisticada. A beleza de Jeannette (Danielle Darrieux) aprisiona a atenção dos motoristas, que, distraídos na tentativa de conquistá-la, deixam os veículos descuidados. A situação permite que a gangue da qual o personagem de Mingand faz parte aja despreocupadamente. Durante as operações e com a ingenuidade que a vida anterior lhe deu, Henri se apaixona por Jeannette. Não é simples mudar de atitude, ainda mais quando não se superam os antigos valores.

Filmado em Paris e falado em francês, Semente do Mal é um projeto simples, mas no qual podemos reconhecer o gérmen que a filmografia de Wilder, espécie de Oscar Wilde do cinema, estava por construir. O filme é menos estável do que poderia ser. Os altos e baixos que encontramos na narrativa – com excesso de fusões e momentos em que a trilha sonora não diz a que veio – se devem muito à concepção pouco equilibrada da história, escrita por Wilder em parceria com três colaboradores (Max Kolpé, Jan Lustig e Claude-André Puget) e direção dividida com Alexander Esway (Juiz Malando, Steppin’ in Society, 1945). Entretanto, o filme ainda carrega consigo duas das mais notáveis características do diretor: o gosto por contar histórias e a sátira social.

Semente do Mal inicia a lembrar do romance russo para dizer que, no fundo, não há vidas ruins, ou que não valem a pena ser contadas. Há, sim, vidas que não foram bem contadas. E o diretor fará questão de nos provar que acredita realmente nesta máxima a transformar histórias aparentemente banais em clássicos. Foi assim com a do funcionário que empresta o apartamento para os encontros furtivos do chefe, em Se meu apartamento falasse (1960), ou a do roteirista Joe Gillis – que como Wilder – terá de fazer uma história ruim render, em Crepúsculo dos Deuses (1950). Se a trivialidade das pessoas é conteúdo, a sátira será o seu tempero preferido.

Em Semente do Mal, a abordagem não é mais delicada, uma vez que o garoto de boa família opta pela contravenção e pelo amor escuso de uma ladra. A perversão dos costumes e o desvio do óbvio são uma crítica cuidadosa para o mundo burguês dos anos 30, falsamente recuperado da imoralidade da depressão econômica, poucos anos antes, e do horror que a Primeira Guerra mostrou possível.

Mais do que será de costume, e com menos habilidade do que posteriormente, Sementes do Mal aposta muito nos diálogos e nas situações. Os personagens planos são joguetes fáceis para uma dramaturgia que levou para a forma o conteúdo, transformando os carros roubados pela gangue em ritmo e agilidade, por vezes fazendo com que as cenas de corrida ultrapassassem o limite do divertimento e da necessidade. O espectador tem a frente, então, uma Paris da velocidade – evidentemente embriagada pela falsa sensação de modernidade produzida pela frota de carros a inundar as ruas da cidade, criticada em um dos letreiros do filme. É uma Paris que somente poderia ter sido vista pelos olhos de um estrangeiro como Wilder, um refinado iconoclasta da cultura do seu tempo.

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