Crítica
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Sinopse
Nica, uma jovem estudante agrônoma, retorna à casa dos pais no sul da Itália após uma longa ausência. Ela está profundamente ligada à terra da avó e às suas oliveiras centenárias, que não dão frutos há três anos.
Crítica
O diretor e roteirista Danilo Caputo possui uma maneira eficiente de lançar o espectador no meio da jornada de Nica (Yile Yara Vianello), sem fornecer explicações prévias. Ela está nervosa, briga ao telefone, enquanto ocupa o banco dos passageiros de um carro rumo a um destino incerto. Não sabemos de onde ela foge, nem para onde vai. O silêncio da garota diz muito, assim como seu nervosismo: sabemos que o destino lhe provoca angústia, até descobrirmos que, na verdade, Nica está voltando para casa. “Estamos muito felizes em te ver”, afirmam os pais ao receberem a garota. Ela responde com um meio sorriso, sinal de que a proposta de reconciliação carrega alguns traumas no passado. Aos poucos, o cineasta desenha um núcleo familiar rompido não por algum trauma profundo, apenas uma diferença essencial de ideias que torna incompatível a convivência entre eles: enquanto a garota, estudante de agronomia, acredita em reabilitar as oliveiras da avó e retomar a atividade na fazenda, os pais pensam em vender o negócio ao primeiro comprador e conseguirem um pouco de dinheiro.
Semina Il Vento (2020) conta com uma jovem atriz formidável, cuja força do olhar já havia sido muito bem explorada em Corpo Celeste (2011), quando ainda era criança. Aqui, Yile Vianello mantém a expressão forte, porém ambígua entre raiva, desolação e felicidade ao se deparar com a decadência de sua casa de infância. A morte das oliveiras não constitui apenas o fim de um modo de vida, também implica no desprezo das raízes familiares em nome do consumo e do lucro imediato. O projeto poderia se encerrar num simples libelo ecológico sobre a importância de preservar o meio ambiente – vide a cena do vizinho que joga lixo no terreno vazio -, ou numa defesa apaixonada da importância da união entre aqueles que compartilham o mesmo sangue. No entanto, Caputo permite que o papel das oliveiras vá muito além. As árvores consideradas mortas estão ao mesmo tempo muito vivas, como constata a futura agrônoma ao microscópio. Ela tenta avisar os pais sobre a possibilidade de salvá-las, mas se depara com a arrogância dos ignorantes. Os tempos anticientíficos e individualistas do século XXI são muito bem representados pela jornada da garota.
Ao mesmo tempo, o filme faz questão de ressaltar esteticamente o caráter destoante da jovem em relação aos demais moradores. O diretor de fotografia Christos Karamanis efetua excelente trabalho com as luzes frias, sublinhando as sombras e os poucos feixes de luz sobre o rosto de sua atriz. Assim, tem-se a impressão de uma personagem ainda mais solitária, dentro de um contexto inóspito. As cenas de Nica com as árvores adquirem um caráter naturalista e científico – a exemplo das experiências com telas e insetos predadores -, no entanto, as mesmas oliveiras são vistas de noite, através de intensos focos de luz direcional que transforma os galhos secos numa abstração assustadora. As plantas ao mesmo tempo vivas e mortas, dependendo do ponto de vista, convertem-se em personagens com sua própria trajetória dentro do filme. O mesmo pode ser dito do pássaro pega-rabuda encontrado pela protagonista, que chega a ganhar seus planos subjetivos, observando o resto do mundo por seus olhos.
É curioso que, no embate entre gerações, a jovem garota represente o respeito à tradição, enquanto os pais sejam aqueles preocupados com o prazer imediato. A inversão dos valores esperados de cada grupo social – ela, a jovem urbana e ecológica, eles, os fazendeiros que não toleram a fazenda – traz uma camada suplementar de leitura sobre a região italiana da Apúlia, em rápida transformação econômica. Os embates entre a filha e os pais jamais se tornam explícitos demais, em partes graças à complexidade da atuação de Vianello, e em partes graças ao roteiro, mais preocupado em brincar com as sugestões e hipocrisias burguesas do que com a verdade escondida por trás das máscaras. O diretor consegue fugir aos perigos tão comuns em narrativas do gênero, evitando que Nica se torne uma heroína ou que os pais se convertam em vilões. Ao mesmo tempo, jamais romantiza a natureza nem produz qualquer forma de poesia inerente aos aspectos insondáveis das plantas e pássaros. A defesa da biodiversidade e das raízes locais passa longe de qualquer fetiche pós-moderno.
Quando talvez o projeto pudesse atenuar sua raiva, rumo à conclusão, ele surpreende por meio de um final ainda mais explosivo. Caputo assume um risco considerável ao fugir da aguardada conclusão conciliadora, preferindo aprofundar a metáfora de animais predadores em comparação com humanos predatórios. O cineasta poderia, com a cena final, perder a adesão do público à protagonista, ou então romper com a coesão estética proposta até então. Ora, o desfecho apenas comprova a crença numa política sem compromissos, uma espécie de luta em que são necessários sacrifícios e medidas extremas. O coming of age da jovem universitária se desenvolve menos como trajetória de recomposição de afetos do que jornada de imposição de si própria – mesmo que isso implique ainda mais riscos e mais solidão. Ainda que o projeto ostente uma aparência simples como um todo, ele esconde um furor transmitido através de suas imagens, e contido na expressão insondável de sua atriz principal.
Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.
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