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Sinopse

Dona María Luisa, de 44 anos, vive em Boavita, um vilarejo totalmente rural da Colômbia, formado por pessoas conservadoras e católicas, que vivem bem no meio dos Andes como se tivessem parados no tempo. Ela, que nasceu como um menino, passou a vida lutando contra o pensamento moralista da Colômbia, e ainda o faz.

Crítica

Maria Luisa Fuentes mora no alto de uma montanha, nos arredores de uma pequena comunidade chamada Boavita, localizada no mais ermo interior da Bolívia. Ela tem 45 anos, e mora na mesma casa onde nasceu e foi criada. Faz suas higienes no pequeno riacho que corre próximo, e passa seus dias entretida ou com o arado, ou com os animais, como a vaca que está prestes a ganhar um bezerrinho. Só tem uma coisa que a difere de tantas outras mulheres como ela: quando nasceu, era um menino. E ainda que nunca tenha se visto assim, é dessa forma que todos a tratam até hoje. Para Ruben Mendoza, diretor e roteirista de Senhorita Maria: A Saia da Montanha, isso, no entanto, não parece ser um problema. Ele está ali apenas para observar. Independente do quão cruel possa resultar o retrato a que se dispõe aqui fazer.

A retratada, como ficamos sabendo, não é uma pessoa de muitos estudos. Se cursou mais do que um semestre de escola, em toda a sua vida, foi muito. Mas ela não parece encontrar problemas em se abrir diante da câmera de Mendoza. Fala francamente sobre si e como vê a vida solitária que leva. Seus problemas, que são inegavelmente muitos, invariavelmente acabam depositados na conta de Jesus Cristo: “Meu Deus é forte e poderoso, e com ele tudo posso enfrentar”, chega a dizer. Fica clara, portanto, a resignação da protagonista conforme o mundo se apresenta diante de si. Ela sofre, tem lamentos, até mesmo chora sem ressalvas. Mas não parece preocupada com o dia seguinte, o qual irá enfrentar com a mesma postura de sempre.

Sofremos todos juntos, no entanto, nas mãos do realizador e daqueles com quem ele conversa na tentativa de saber mais sobre Maria Luisa. Aquela sobre a qual ela se emociona toda quando fala a respeito, que afirma ser a única a se preocupar com sua existência, quando inquirida, diz que assim o faz por “caridade”. Outra conclui que que tal indivíduo só pode ser daquele jeito – uma mulher que se barbeia, por exemplo – por ter nascido de uma mulher que foi estuprada pelo próprio irmão. Há as que afirmam que ela, quando nasceu, possuía chifres e um rabo. O seu patrão, dono das terras onde ela mora, dá a entender que a “tolera” apenas por ser uma funcionária competente. Não há carinho, apreço, um olhar sequer que se dirija a ela com ternura. É marcada pelo tempo, pelo que viveu e pelo modo como todos aqueles ao seu redor a veem. Mesmo assim, não se esconde. E segue vestindo suas saias.

Esse, aliás, parece ser o grande viés feminino de Senhorita Maria – junto com os cabelos compridos, é claro. Mas é da saia que faz questão de enfatizar. Afirma ter saído da escola por não permitirem que usasse a vestimenta. No entanto, logo em seguida declara ter sido criada pela avó, que sempre a tratou como uma menina, mostrando, inclusive, fotos suas quando pequena de vestidinho rosa. As contradições estão por todos os lados. Mas ninguém parece preocupado em esclarecê-las. Pelo contrário, fundamenta-se pelas vozes inquiridas as versões mais estranhas – para não dizer ofensivas – a respeito da personagem no centro da questão. É de se perguntar, portanto, se ela chegou a ver o filme que fizeram com ela – e, mais importante ainda, o que pensa sobre tudo isso, se é que chegou a ser questionada a respeito.

Senhorita Maria: A Saia da Montanha, como o título já adianta, preocupa-se mais com os detalhes e menos com o todo. “É um homem que se veste como mulher”, gritam as crianças por onde passa. E vai adiante, como se aquilo não fosse com ela. Nem mesmo registro tem – e quando o faz, e com identidade feminina, o diretor não parece muito interessado além do olhar casual. Vive no escuro, como um animal acuado – mas tem energia elétrica para assistir televisão à noite? E quando a vaca leiteira enfim dá à luz, é a noite, sob a luz de lanternas, com o filhote nascendo quase que às escondidas. Assim vive Senhorita Maria. Um realizador preocupado não aceitaria, simplesmente, o que encontrou – e como foi seu primeiro acesso até ela? Ninguém sabe. Sem perguntas, vai compactuando com todos os estereótipos, preconceitos e ignorâncias que encontra nesse caminho, os quais ela é obrigada a lidar dia após dia. O filme termina, e a deixa para trás. E será esta a dor que permanecerá com aqueles que dessa história compartilharem.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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