float(12) float(3) float(4)

Crítica


2

Leitores


3 votos 8

Onde Assistir

Sinopse

Um olhar sobre a vida do brasileiro Sérgio Vieira de Mello, alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, vitimado por uma explosão de bomba em Bagdá.

Crítica

Para quem desconhece a trajetória do diplomata Sérgio Vieira de Mello, o documentário é rico em descrições e informações de terceiros. “Ele era um brasileiro. Ele podia ser ele mesmo”, afirma a ex-namorada. Ele era “o homem mais experiente e mais carismático das Nações Unidas”, explica outro depoimento. “Uma mistura de James Bond com Bobby Kennedy”, sugerem. Homens e mulheres ressaltam que Sérgio era “lindo”, sedutor, charmoso, divertido, inteligente, culto, bom estrategista, honesto, bem informado, altruísta. Mesmo durante o acidente que o deixou horas à beira da morte, Sérgio pensou apenas nas outras pessoas, jamais em si mesmo. Mesmo morto, seu cadáver “ainda era lindo”, lembra um testemunho. Durante a infância, ele tinha dentes perfeitos, ria muito e era bem-humorado, segundo a mãe. Todos os consideravam um grande amigo e excelente profissional. Imagine alguma qualidade passível de ser atribuída a um homem, e o protagonista deste filme a terá, em dose superior a qualquer outro mortal.

Sergio (2009) constitui um projeto relativamente recente, porém reflete uma vertente do documentário em desuso no cinema contemporâneo: a hagiografia dentro dos moldes da telerreportagem. O diretor Greg Barker acredita que, para honrar a trajetória do diplomata, precisa sublinhar a cada cena as suas inúmeras virtudes. Não há dúvida de que o protagonista tenha desempenhado um papel notável dentro das Nações Unidas. No entanto, o olhar puramente moral o distancia de discussões políticas fundamentais a respeito do diplomata. Afinal, ele se encontrava em posição de liderança numa instituição fortemente questionada durante a invasão norte-americana no Iraque, e que tomou decisões controversas diante dos conflitos geopolíticos das últimas duas décadas. Para o filme, o mais importante é isentar Sérgio de responsabilidade por possíveis danos colaterais guerra. Ele apenas quis ajudar, sempre. Compreende-se que o retrato de personagens controversos invista numa defesa acalorada de suas qualidades ou defeitos, para demarcar o ponto de vista. Ora, o diplomata de méritos consensuais jamais precisou de uma defesa tão unilateral.

Talvez a vertente de homenagem, ao invés de debate, provenha do material de origem. O livro “Sergio: One Man’s Fight to Save the World” carrega a idolatria desde o título, algo preservado na versão cinematográfica. Para um documentário da HBO, a produção se revela particularmente pobre, com poucos depoimentos, entrevistados transpirando sob a forte luz de refletores, cortes internos (“cropados”) na imagem de aparência pouco polida, e principalmente uma reconstituição novelesca do atentado que matou Sérgio Vieira de Mello no Iraque. As imagens borradas e granuladas pretendem expressar o tom de urgência ao invés de fornecer qualquer informação realmente útil ao espectador. A animação do rabisco de um socorrista para informar onde se encontravam os corpos sob os escombros beira o humor involuntário, devido à incapacidade de compreensão dos esboços precários. A cada novo depoimento sobre as virtudes do brasileiro, uma trilha sonora engrandecedora reforça seu martírio e sua importância. Mesmo o fato de ter abandonado os filhos e a esposa, enquanto multiplicava relações extraconjugais em outros países, é visto como uma decorrência da beleza irresistível deste homem, e das concessões que ele teria feito para ser um ótimo profissional. O discurso transborda em machismo ao acreditar que, para ser um ótimo diplomata, Sérgio precisou deixar os filhos de lado, pois seria impossível se destacar na ONU e cuidar de uma família ao mesmo tempo. Será que esta lógica se aplicaria também às mulheres? Não é de se espantar que os filhos e a ex-esposa não participem dos testemunhos.

Ainda mais questionável é a obsessão do filme pela morte de Sérgio. Era esperado que o atentado ocupasse parte significativa da narrativa, no entanto, o filme é inteiramente conduzido para a morte, e a partir dela. Barker apresenta em menos de meia hora a explosão criminosa no edifício da ONU, enquanto a montagem efetua idas e vindas no tempo para retornar meia dúzia de vezes ao dia do falecimento. O suspense quanto ao desfecho do atentado – a edição sugere que ele poderia sair vivo – reflete um retardamento do anúncio da morte para prolongar o prazer e, portanto, o sofrimento e o martírio deste homem. O terço final adota um discurso muito próximo do sacrifício religioso, dando voz ao policial que exigia rezas católicas de Sérgio sob os escombros, e sugerindo que o diplomata teria morrido “por não perceber nós dois como milagres”, defende o socorrista cristão a respeito de si próprio e do colega militar. O diretor jamais confronta este ponto de vista, deixando que a conversa sobre Deus e sobre o valor da persistência domine a parte final do documentário em tom melodramático. A demora em revelar a morte de Sérgio e o aceno fictício à possível sobrevivência do homem que sabemos ter morrido corresponde a um fetichismo obsceno do atentado.

Além disso, a busca dos produtores por um terrorista que confesse ter mirado especificamente o escritório de Sérgio para posicionar a bomba reforça a visão do “escolhido”, o homem mais importante do que todos os outros. “Agora ele está lá no céu, certamente tentando ajudar as pessoas lá também”, defende o guarda-costas de Sérgio. Ao fim, ele é rapidamente transformado em anjo da guarda. Não existe problema algum em se defender uma pessoa admirada no cinema: o problema se encontra na maneira de fazê-lo. Sérgio Vieira de Mello é envolto numa defesa cristã, classista e machista – um verdadeiro culto à personalidade. Este tipo de ponto de vista se transforma em desserviço a qualquer profissional real que tenha atuado na geopolítica das guerras do século XXI. Afinal, a imagem do diplomata é tão perfeita que soa irreal e mentirosa. Em meio ao vídeo institucional pela canonização de Sérgio, nossa tendência é duvidar das informações devido ao exagero e conformismo, ou seja, à falta absurda de distanciamento em relação ao tema. Fatos e informações reais são misturados com tamanhas virtudes tornam ao público impossível separar a imagem brilhosa de seu referente real.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *