Crítica


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Sinopse

Após a morte suspeita de um amigo, John Shaft Jr. resolve pedir ajuda a seu pai, Shaft, para resolver o caso. Ele aceita deixar a aposentadoria para iniciar a investigação, apesar dos problemas existentes com o próprio filho.

Crítica

O movimento Blaxpoitation surgiu nos Estados Unidos no começo dos anos 70. Ainda que ancorado basicamente em caricaturas e estereótipos, teve o grande mérito de encher as telonas, outrora de protagonismo reservado aos personagens brancos, de filmes interpretados e ora dirigidos por profissionais negros. Mesmo que não tenha sido unanimidade – vários integrantes de organizações de direitos civis acreditavam que seus exemplares alimentavam preconceitos ao oferecer distorções da comunidade afro-americana –, foi, sem dúvida, um espaço de afirmação. Shaft (1971), um de seus principais expoentes, agora é sequenciado por esta produção que tenta homenagear o espírito de uma época, contudo sem balanceá-lo devidamente com os ditames da contemporaneidade. O choque geracional entre John Shaft (Samuel L. Jackson), sobrinho do ícone vivido por Richard Roundtree, e seu filho, JJ Shaft (Jessie T. Usher), é anacrônico, mediado pela reafirmação de valores antes, ao menos, compreendidos dentro de um contexto em que o exagero fazia parte do estilo.

Não dura muito a alardeada dificuldade do jovem na interação com o pai que supostamente o abandonou desde bem cedo. John sobressai com sua personalidade “à moda antiga”, resolvendo tudo na base da violência, tirando sarro do filho em virtude das roupas, da alimentação saudável, de tudo que o veterano considera “frescura”. JJ frequentemente o repreende por manifestações politicamente incorretas, assim evidenciando o abismo considerável. Sua falta de convicção, porém, favorece a celebração dos procedimentos do detetive que atira primeiro e pergunta depois. Em determinados instantes parece que o filme está enrolando quanto à missão principal – entender o porquê o amigo do protagonista foi dado como morto após a overdose suspeita – para que haja uma nova alfabetização do analista de sistemas do FBI. A figura de Samuel L. Jackson leva o rapaz para beber, apresenta-lhe mulheres sexualmente disponíveis, ou seja, vela a sua virilidade.

Desse modo, Shaft passa boa parte de sua duração não sendo nostálgico, mas elogiando desbragadamente as condutas violentas, criando uma aura de glamour em torno das armas de fogo e, de quebra, considerando somente viável um tipo de masculinidade, o que não deixa espaços às sensibilidades e afins. Diferentemente dos filmes da safra Blaxpoitation, cuja concepção estética e moral, de certa forma, comportava incorreções em virtude da pegada evidentemente hiperbólica e caricatural, aqui a atmosfera se aproxima da realidade, o que torna as escolhas mais infames. Sasha (Alexandra Shipp), enfermeira que funciona como interesse amoroso e, adiante, donzela em perigo, chega a dar um sermão no amigo de longa data por ele refutar a utilização de armamentos. Ela fala com orgulho da pistola portada constantemente e os desdobramentos da trama, nos quais o artefato se torna vital, se encarregam de completar a mensagem fomentada desde o início.

A despeito do carisma de Samuel L. Jackson – sua imitação de Donald Trump e a piada com o fato de ser confundido com Laurence Fishburne são impagáveis – Shaft pouco funciona, senão para consolidar uma visão conservadora travestida de libertária. Fazem parte desse pacote torpe o descrédito da polícia, a construção da necessidade de “justiça pelas próprias mãos”, a valorização da masculinidade tóxica e, de quebra, o resvalo na xenofobia ao apresentar, sem o mínimo de tom crítico, de que maneira o governo estabelece potenciais alvos quando o assunto é terrorismo. JJ é apenas virtualmente o protagonista, uma vez que sua subjetividade é frágil ao ponto de ser absolutamente modificada pela influência paterna. O surgimento de Richard Roundtree, apesar de uma bela homenagem, permite o aumento do folclore e da banalização da ausência do pai. O cineasta, então, encara um estereótipo nocivamente atrelado à paternidade negra como algo menor. Aliás, justamente a flagrante leviandade da abordagem de certas questões espinhosas faz dessa produção, além de atravessada por problemas de várias ordens, inclusive de ritmo e consistência, praticamente irresponsável.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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