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Crítica


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Sinopse

Shaun abraça a missão de pastorear um extraterrestre de poderes especiais que cai perto da fazenda. Os obstáculos são ainda maiores, pois uma organização tenta de tudo para capturar o visitante especial.

Crítica

Entre as diversas possibilidades de adaptar o cinema de gênero ao universo infantil, estúdios de animação como a Laika apostam em versões simplificadas do terror, mas ainda fornecendo suspense e uma relação direta com a morte, como em ParaNorman (2012). A Aardman, por sua vez, se apropria dos códigos das aventuras com extraterrestres para propor uma grande farsa, repletas de gags e identidades trocadas – algo mais próximo de Lilo & Stitch (2002), neste sentido. Para abordar a história de um alienígena criança que chega à Terra por acidente, Shaun, o Carneiro: A Fazenda Contra-Ataca (2019) brinca com todas as passagens obrigatórias do imaginário sobre extraterrestres, desconstruí-las uma a uma numa grande brincadeira cinéfila. Por trás da defesa de valores sobre a amizade e a família existe uma coletânea metalinguística de reencenações de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977) e Alien, o Oitavo Passageiro (1979), entre outros.

A priori, o roteiro se mantém simples e previsível: Shaun e seus amigos precisaram proteger o alienígena da ganância dos adversários enquanto encontram uma maneira de enviá-lo de volta ao seu planeta. No entanto, a direção se sobressai devido a escolhas inteligentes de narrativa, especialmente numa história sem qualquer diálogo inteligível, apenas grunhidos, ruídos e onomatopeias. Os diretores Will Becher e Richard Phelan fazem uso surpreendente da linguagem cinematográfica: numa sequência veloz, expõem as brincadeiras das ovelhas e do cachorro, explicando porque cada uma delas é proibida; em outro momento, utiliza o espaço fora de quadro para sugerir humor, quando uma caneca se quebra longe da imagem. Mais tarde, a chegada de uma nave espacial ao fundo da imagem contrasta com a cena em primeiro plano, levando o personagem a acreditar que o som produzido pelo veículo espacial provém de seu tecladinho caseiro. O filme desenvolve dezenas de brincadeiras lúdicas com a representatividade: os sons provêm de fontes diferentes da imaginada, as ações resultam em consequências inesperadas, os movimentos de câmera revelam personagens que sequer sabíamos se encontrarem no plano. O filme está disposto a se desconstruir e se ressignificar a cada cena, como num jogo de blocos desmontáveis.

Além disso, a dupla de cineastas explora muito bem as possibilidades da troca de identidades na construção dos personagens. Ovelhas disfarçam-se de astronautas, cachorros são confundidos com extraterrestres, alienígenas tentam se passar por humanos. Ovelhas de madeira substituem os animais reais durante um plano de fuga, o cachorro será interpretado como o motorista de um veículo que ele não conduzia, uma pizza e um frisbee se confundem com discos voadores, e os discos voadores de papelão buscam substituir os reais. Todos os personagens desta mistura entre comédia, aventura e ficção científica são diretores em certa medida, comandando sua mise en scène caseira para enganar os demais. Vencerá aquele cuja ficção for mais convincente. Por isso, ao invés do habitual discurso do tipo “aceite-se como você é”, ou “celebre sua diferença”, típico de outras animações com alienígenas (Os Brinquedos Mágicos, 2017, Abominável, 2019), este filme prefere sugerir às crianças que criem, disfarcem, enganem, expandam suas criatividades, coloquem-se no lugar dos outros. Não por acaso, as ovelhas antropomórficas simbolizam adultos que tomam conta do alienígena-bebê, também humanizado (ele possui bichinhos de pelúcia). Enquanto isso, os humanos se tornam os seres selvagens e irracionais. Experimenta-se assim a troca de funções como ferramenta cômica.

Ao mesmo tempo, a construção estética do stop motion fornece algo precioso ao cinema digital, especialmente às animações: a noção de materialidade dos personagens. Shaun, o alienígena Lu-La e seus amigos possuem a fisicalidade de bonecos, algo que se aproxima do universo lúdico da infância. Ao invés de simplesmente desenhar objetos levitando num espaço virtual, sente-se a noção de peso, de volume, de profundidade em cada personagem. Em outras palavras, estes bonecos constituem algo que as crianças poderiam tocar, aprofundando o contato deste universo com o faz de conta. Shaun, o Carneiro: A Fazenda Contra-Ataca exibe impecável trabalho de iluminação, além de complexo uso de ruídos, trilhas e canções, algo essencial numa produção sem diálogos. Os diretores evitam saturar a banda sonora, mas também não buscam uma pureza do minimalismo, introduzindo vinhetas musicadas quando necessário à trama. A montagem imprime ritmo eficaz, nem acelerado em excesso, nem esticado no meio da aventura. O roteiro ainda se dedica a descrever as motivações de cada personagem, incluindo os vilões, quando seria muito mais fácil apresentar figuras malvadas por natureza.

Por fim, a sequência de Shaun, o Carneiro (2015) comprova a qualidade dos estúdios Aardman, não apenas para a técnica do stop motion (com impressionante riqueza de detalhes, e uma aparência distinta para cada ovelha), mas acima de tudo para o desenvolvimento do roteiro. Os diretores teriam um trabalho facilitado caso apostassem em personagens que tropeçam e caem, explicações convenientes e interesses amorosos. Entretanto, produzem humor pelos ângulos inusitados da câmera, pela duração inesperada de uma cena, pela iluminação curiosa de um cenário. Existe uma verdadeira reflexão cinematográfica por trás destas imagens, algo que torna o filme não apenas uma boa animação para crianças, mas um bom filme, simplesmente. A típica jornada do herói não implica em banalização da linguagem, nem numa visão superficial de mundo. Não é preciso rebaixar a complexidade do cinema para se atingir um público mais jovem: é possível ser ao mesmo tempo sofisticado e brincalhão. Talvez os adultos percebam muitas riquezas que os pequenos não perceberão, e melhor assim: cada um terá diferentes prazeres ao longo da sessão.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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