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Crítica


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Sinopse

Olga e Vadim formam um casal de classe média-baixa numa pequena cidade russa conhecida pelo inverno rigoroso e os acidentes de trânsito. Ele trabalha com o conserto de peças de carros, e ela, como funcionária dos correios. Os dois sonham em comprar um caminhão ilegalmente na Europa para trabalharem com reboque. Os planos mudam quando Vadim finalmente tem acesso à Internet, e se apaixona por uma stripper norte-americana que atende pelo codinome Sheena667.

Crítica

A vida do casal Olga (Yuliya Peresild) e Vadim (Vladimir Svirskiy) é marcada pela marginalidade. O filme apresenta a dupla como trambiqueiros de baixo nível, buscando saídas para a miséria: ele rouba peças do ferro-velho, enquanto ela tenta fraudar os jogos de aposta dos correios. Quando credores batem à porta, não respondem. Ambos sonham em adquirir ilegalmente um caminhão na Europa para trabalhar com reboque, e recebem em seu modesto apartamento pessoas que desejam utilizar a Internet sem serem rastreados - afinal, quem se importaria com o casal vivendo em cima da oficina mecânica? Não existem planos ambiciosos no horizonte: eles apenas concebem alternativas para fugir de uma realidade estagnante. O cenário de inverno profundo e abandono por parte do governo é simbolizado pela proximidade dos protagonistas em relação à “Estrada da Morte”, curiosa via pública onde passam poucos veículos, mas se registram inúmeros acidentes. Esta ironia, explorada enquanto meio de vida para Vadim, jamais se altera - da primeira à última cena, pessoas se ferem na estrada de aparência segura. Caso alguém sofra um acidente, terá que sair das ferragens do carro e se encaminhar ao hospital sozinho, porque ninguém virá buscá-lo.

O título Sheena667 (2019) faz referência a um espectro, um sonho virtual. Sheena667 é uma stripper que faz performances na Internet em troca de dinheiro. O pobre mecânico, sem conhecer as regras da contemporaneidade online, apaixona-se pela garota que promete corresponder ao seu afeto. A menina nunca será vista fora das webcams e dos telefones celulares - é importante ao filme que ela permaneça no domínio das ideias, no âmbito do desejo. As juras de amor eterno disparadas no chat constituem evidente manipulação por parte da norte-americana, no entanto, correspondem a algo de que Vadim precisa: um indício de recomeço em outro lugar, com uma garota atraente que o ame. O sonho americano resulta na fábula de perdição: conforme o homem tímido investe no amor destinado ao fracasso, perde a conexão com a realidade. Aos poucos, o herói descobre que a rotina no universo das telas pode ser mais sedutora do que aquela entre garagens e ferros-velhos. Por sua vez, Sheena667 se transforma na diretora de uma ficção: ela cria personagens, elabora cenas, controla a luz e o tempo de duração das apresentações. A jovem elabora uma narrativa sob medida à pulsão de seu cliente, iludindo-o até que a fronteira entre verdade e a fabricação desapareça.

O diretor Grigoriy Dobrygin aposta num formato curioso de roteiro e montagem, fragmentando a narrativa em cenas quase autônomas. Estes episódios adquirem títulos próprios e amplos (“Amigo”, “Traição”, “Irmão”), dificultando a delimitação dos saltos temporais e as relações de causa e consequência. O humor decorre da improvável articulação entre esquetes - Vadim descobre Sheena pela primeira vez e, na esquete seguinte, está profundamente apaixonado. Ao invés de abordar a obsessão do russo através de um olhar piedoso, ou temeroso por sua saúde mental, o cineasta prefere inseri-lo num país de pessoas nostálgicas, aguardando uma promessa de ascensão social. Cada risada se associa a um fundo de tristeza: os planos do sujeito russo em viajar aos Estados Unidos antecipam um fracasso evidente; a reação do vilarejo à “traição virtual” do protagonista beira a perseguição, e a chegada de carros em estado deplorável reforçam a impossibilidade de conserto. “Não tem como voltar atrás”, repetem os diálogos em duas situações distintas. A Internet e seu mundo de mentiras personalizadas via algoritmos transformam-se na melhor viagem que Vadim poderia efetuar, ainda que falsa. O filme pode ser lido enquanto fábula romântica dos tempos de fake news.

Felizmente, o autor evita as armadilhas do cinismo e do conformismo, por meio de instantes de respiro. A bela imagem utilizada pelos cartazes nacional e internacional faz referência ao momento em que o herói gira num balanço de pneus, ostentando uma alegria infantil. Quando ele enfim cai na neve, a câmera, presa ao balanço, continua acompanhando o objeto vazio girando pelos ares - ou seja, até o dispositivo se mostra disposto a abandonar Vadim quando necessário. Sheena667 resulta numa rara comédia de pessoas sérias, diante das quais o espectador se diverte com desconforto, sem saber se deveria estar se entretendo com estas figuras fracassadas, ou temendo por elas. Esta forma inteligente de humor evita os recursos fáceis das piadas físicas, trocadilhos e gags. Há um riso de desespero contido nesta obra tão próxima da comédia do absurdo - vide as sequências com produtos eletrônicos sendo molhados, benzidos, levados ao supermercado para passear. Presa aos sonhos virtuais de Vadim, a stripper oferece uma metáfora do desejo esvaziado quando se substitui a essência pela aparência, e o real por sua representação. 

Vladimir Svirskiy, o excelente ator de Na Neblina (2012), utiliza uma composição voluntariamente inexpressiva para gerar estranheza ao homem ardendo em desejo. Os olhos transbordam de emoções - raiva, medo, paixão, ternura -, porém o restante do rosto e do corpo permanece imóvel, numa interpretação tragicômica em si própria. Ao lado deste palhaço triste encontram-se Yuliya Peresild, realista até demais no papel da amarga Olga, e o sarcástico Pavel Vorozhtsov encarnando as classes privilegiadas em teor bufão. O registro discretamente antinaturalista do elenco, utilizando programas de computador deslocados da realidade (o desenho sexy que ensina a falar inglês) abre as portas ao realismo fantástico. O filme não nos convida a rir daquilo que os personagens tenham de diferente ou de esquisito, e sim de suas características universais: a paixão profunda por uma pessoa, o sonho de um trabalho digno. Rimos, no fundo, porque Olga e Vadim representam todos nós, especialmente os indivíduos precarizados nos últimos anos devido a pandemias graves e presidências gravíssimas. Sem surpresas, os sonhos da dupla permanecem inalcançáveis - a narrativa é lúdica, porém nada otimista. Por trás da descrição leve, existe um retrato sombrio da Rússia contemporânea.

Filme visto online no 2º Festival de Cinema Russo, em setembro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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