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Sinopse

A escritora de terror Shirley Jackson e o crítico literário e professor universitário Stanley Hyman são um casal erudito. Ambos exercem um magnetismo sobre um estudante e sua esposa grávida, que passam a morar com eles.

Crítica

“Eles a apedrejaram”. A frase de abertura do filme, primeira referência a Shirley Jackson, está longe da apresentação tradicional de um personagem cinematográfico, especialmente uma artista real. Constrói-se a fama da protagonista por terceiros, antes que ela seja vista em cena: no caso, pela jovem Rose (Odessa Young), que passa a morar na casa da escritora enquanto o marido leciona na universidade do marido de Shirley (Elisabeth Moss). Após evocar com assombro as tentativas de morte sofridas pela autora de livros de terror, Rose e o jovem marido Fred (Logan Lerman) fazem sexo no trem. Do início ao fim, o filme aproxima os dois estímulos: o erotismo e o assassinato, as pulsões de vida e de morte. Quanto mais próximos os personagens se encontram do abismo – às vezes, literalmente –, mais carregados de libido estarão. A convivência pouco harmoniosa entre casais numa casa amaldiçoada, sendo duas pessoas eruditas e dois aspirantes à classe média, transforma-se num caldeirão de manipulações variadas. Não se sabe se o quarteto terminará em banho de sangue ou numa orgia: ambas possibilidades soam plausíveis dentro do perturbador roteiro de Sarah Gubbins.

O texto guarda semelhanças com Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, peça de Edward Albee adaptada ao cinema por Mike Nichols em 1966. No entanto, apesar das interações baseadas nos confrontos verbais entre os protagonistas, não há qualquer sinal de teatralidade na condução da cineasta Josephine Decker. Ela prefere mergulhar num universo íntimo, entre cenas que parecem sonhos (ou pesadelos) misturados ao real. As mulheres comandam a trama, embora os homens ditem as regras sociais. Enquanto elas cuidam da limpeza e da comida, eles exploram o espaço externo das universidades, bares e coquetéis entre intelectuais. Há um caráter de justiça, ou talvez de vingança, por parte das duas mulheres, opostas e complementares: por um lado, uma brilhante escritora antissocial e grosseira, e por outro lado a jovem inserida no imaginário da esposa suburbana das décadas de 1940-1950, até descobrir outras formas de existência. As sequências envolvendo cogumelos, um registro bibliotecário encontrado entre os livros, e o jogo de pernas sob a mesa resultam em embates brilhantes porque perigosos, intensos, e talvez insignificantes ao mesmo tempo. Decker sugere que tudo pode acontecer, inclusive nada. Estamos num terreno de hipocrisias, e ao invés de destruir o adversário, “você pode dar corda para ele se enforcar sozinho”, lembra Shirley. Há estratégias mais perversas do que a morte.

Parte considerável do prazer diante desta experiência se encontra no jogo entre atores. Elisabeth Moss compõe com desenvoltura a mulher tão violenta quanto frágil: se por um lado é dependente emocionalmente do marido e não consegue sair de casa, por outro lado, demonstra prazer em humilhar os hóspedes. Ela se choca com o igualmente afiado Michael Stuhlbarg, assumindo a postura do marido de aparência afetuosa, que na verdade torce para a escritora não produzir texto algum, porque gosta de ser indispensável à sobrevivência da esposa. Embora critique a crise emocional dela, ele a alimenta para sustentar o domínio da situação. Odessa Young, no papel de maior variação emocional, abandona rapidamente a ingenuidade da garota camponesa para demonstrar novo corpo, voz e olhar. “Na verdade, ninguém se importa se você vive ou se você morre”, ela dispara, seja enquanto frase geral, seja diretamente para Shirley, dependendo da interpretação. Lerman possui atuação mais discreta, porém eficaz. O roteiro se converte numa dança, uma coreografia de avanços e recuos, seduções e repulsas. Nunca se sabe ao certo quem possui o domínio da situação, pelo menos até a glacial cena de conclusão.

Em paralelo, Shirley oferece uma intricada representação metalinguística do poder da literatura. Sem explorar a fundo nenhuma obra da autora, mas fazendo referência a Hangsaman (1951) e The Missing Girl (1957), o roteiro brinca com as conexões entre real e imaginário. As mulheres poderosas no filme na verdade são três: Shirley, Rose e Paula, a aluna desaparecida, derivada de uma história real até hoje não esclarecida. Esta mulher sem rosto povoa a mente dos personagens, que especulam sobre o responsável pela morte e os motivos do suposto suicídio/homicídio. Quando a escritora pesquisa sobre a jovem vitimada para seu novo livro, está falando de sua própria condição feminina, e também daquela de Rose. A montagem efetua um trabalho complexo de triangulação entre as mulheres, fragmentando a narrativa através do fato e da especulação. A direção de fotografia maneirista de Sturla Brandth Grovlen intensifica a desorientação ao operar uma composição móvel em teleobjetivas. A imagem salta rapidamente de um rosto ao outro, muda a profundidades de campo durante o plano, satura as cores para dessaturá-las na cena seguinte. Paira o aspecto interessante de conto de fadas adulto (no sentido em que os contos originais, de João e Maria a Alice no País das Maravilhas, eram bastante cruéis por si próprios), ainda que sem um ensinamento claro ao final. Trata-se de uma narrativa amoral, talvez niilista, com tudo de bom e ruim que isso possa implicar.

Histórias de terror não são “apenas histórias”, como se defende Shirley diante de um leitor inconveniente. “São profecias”, corrige o homem apavorado. Por isso, não se espanta que o desfecho proporcione os exatos rumos para os quais o espectador vinha sendo silenciosamente preparado. Costuma-se dizer em aulas de roteiro que as melhores conclusões são aquelas que surpreendem, entretanto, parecem inevitáveis: a história não poderia se encerrar de outra maneira. Este é o sentimento diante de Shirley. Talvez o desenlace deste conflito asfixiante (Um final otimista? Pessimista? Para quem?) fosse a única alternativa viável, embora choque pela audácia criativa e narrativa. Este é um filme de escritor sobre escritores, um filme sobre a condição feminina feita por mulheres, dotado da capacidade ímpar de traduzir cinematograficamente as opressões e as maneiras de subvertê-las por meio da arte. Decker evita o cinema bom-moço de conciliações forçadas dentro de uma América acolhedora, preferindo rupturas e aprendizados traumáticos. Talvez o projeto seja amargo demais para o público amplo. Resta torcer para que os espectadores abracem esta crônica marcada pela ferocidade típica das melhores histórias de horror.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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