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Crítica


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Sinopse

Um homem foge de um mundo que é estranho e frio. Peles e fogos o mantêm quente. Uma caverna serve de abrigo. Ele está quebrado, mas quer ficar sozinho.

Crítica

Seria tão tentador quanto inútil determinar um tema exato em Siberia (2020), dizendo que “é um filme sobre...”. Muitas coisas poderiam completar esta frase: um filme sobre a solidão, sobre o caráter fantástico do cinema, sobre o encontro de um homem consigo mesmo; um filme psicanalítico, um filme sobre uma descida aos infernos, sobre a distância e o distanciamento, sobre a metafísica do sujeito, a crise da masculinidade, o cinema em si etc. Todas essas alternativas soam plausíveis e absurdas ao mesmo tempo, e qualquer outra poderia ser sugerida no lugar. O projeto não possui uma temática clara, nem deseja possuir. Portanto, a tentativa de “decifrá-lo” soa contraproducente: se o diretor Abel Ferrara quisesse fornecer uma narrativa linear ao espectador, ele o faria. Se desejasse introduzir uma explicação no final, também teria meios para tal. Afinal, experiências como a de Siberia são muito mais difíceis de construir do que o tradicional começo, meio e fim.

A dificuldade não se traduz necessariamente em qualidade, é claro. Por mais sedutoras que possam parecer as imagens isoladas – e como julgar a beleza de uma imagem por si só, sem avaliar sua adequação ao conteúdo? -, elas exigem um esforço hercúleo do espectador para acompanhar um protagonista sem características definidas, sem motivações nem objetivos, que encontra pessoas aleatoriamente, em espaços a princípio desconectados entre si – uma gruta, uma caserna no meio das montanhas de gelo, o Sistema Solar. As cenas se sucedem sem se conectar nem se desenvolver (a não ser pela conexão forçada da montagem), transmitindo a aparência de algo fortuito, vaidoso. Willem Dafoe transmite sem esforços uma expressão de mistério decorrente da própria recusa da narrativa em produzir um sentido específico. Quando um corpo se desloca entre tantos espaços diferentes sem gerar conflitos, o mistério decorre naturalmente de qualquer expressão que ostente, como um efeito Kuleshov. Pode-se falar menos em atuação do que em performance do ator. Ele se torna um corpo presente, disponível.

Toma-se a precaução de não coincidir um filme voluntariamente confuso com uma obra que teria se enganado em sua comunicação – a confusão é a proposta de comunicação, no caso. Existe evidente controle das opções imagéticas e discursivas, provenientes de um diretor que, após muita experiência no cinema, decidiu abandonar a obrigação tácita de agradar seu público, ou de conduzi-lo a um rumo específico. Menos do que uma colagem aleatória, o resultado transmite a aparência de um caos organizado, ou ainda um filme desestruturado pelo prazer de fazê-lo. Siberia possui uma natureza retórica: ele se desenvolve enquanto negação deliberada de uma forma de cinema. Enquanto nas obras comerciais o produtor condiciona o trabalho da direção pensando num público em potencial, neste tipo de obra, ao contrário, é o diretor quem condiciona a produção. Não existe preocupação quanto ao consumo da obra pelo seleto e fiel grupo de apreciadores: o público seguirá.

Ferrara constrói este tipo de obra porque o pode. Seu status de autor construído ao longo de décadas o permite efetuar um filme que transpira liberdade na mesma medida em que transparece orgulho e pretensão – algo que Terrence Malick, Francis Ford Coppola e, em menor medida, Lars von Trier também efetuaram em suas obras mais recentes. Não se surpreende que grandes homens, talentosos e reconhecidos enquanto tal, testem seus limites. Até onde posso ir e ainda ser aceito, aclamado, selecionado no Festival de Berlim, e ter uma equipe com centenas de pessoas, milhões de euros à minha disposição? Até onde a gigantesca estrutura do cinema autoral estaria disposta a se desdobrar para aceitar qualquer coisa que eu fizer? A sensação de onipotência transborda nas imagens de Siberia. Talvez se possa fazer um exercício de especulação e supor que, caso um jovem diretor propusesse algo idêntico em seu primeiro longa-metragem, seria taxado de louco, megalomaníaco, arrogante. Ingenuidade nossa: o jovem diretor jamais reuniria os fundos para produzir este roteiro.

O rótulo de autor, especialmente em círculos cinéfilos, se torna um salvo conduto: independentemente do que fizerem, estes homens serão selecionados, vistos, exibidos. O poder irrestrito pode gerar monstruosidades, o que talvez seja o caso de Siberia, porém sacia a nossa vontade de descobrir o que faria um criador sem qualquer restrição à sua criação. Talvez nós estejamos interessados em conhecer estes monstros, porque nos parecem novos, desafiadores, e porque decorrem da falsa impressão de que uma obra será ainda melhor à medida que perder suas restrições. Ora, as balizas são fundamentais à criação artística, que sejam as tristes limitações de produção ou então as restrições autoimpostas, de ordem conceitual. A experiência de Siberia torna-se portanto uma amostra da retórica autoral. Uma obra sem limites é também uma obra sem rumo.

Filme visto no 70º Festival Internacional de Berlim, em fevereiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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