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Sinopse
Em pleno século 17, dois padres jesuítas são enviados ao Japão à procura de seu mentor desaparecido. O país está fechado e o Catolicismo proibido em território nipônico, o que vai colocar inúmeros empecilhos na árdua missão.
Crítica
Martin Scorsese é um dos últimos grandes que seguem em atividade, e o melhor, ainda produzindo trabalhos dignos de atenção. Ele não é um Woody Allen, que deixa clara sua preocupação com quantidade – e que, eventualmente, dentre dela resultam lampejos de genialidade – ou um Steven Spielberg, que com o avanço da idade tem deixado de lado a inquietude da juventude para se acomodar em velhos conceitos. Felizmente, está longe de um Coppola, que praticamente abandonou o cinema, ou um Brian De Palma, que sempre almejou mais do que seu talento lhe possibilitava. É por isso que se faz necessário um preparo especial a cada novo trabalho do diretor vencedor do Oscar por Os Infiltrados (2006). Afinal, ele não está disposto a ver seu esforço se vender barato, entregando algo simples e, pior ainda, simplório. Há um estudo grande por trás de cada imagem, fala ou gesto percebido em cena. E estas constatações poucas vezes foram tão exatas e precisas como se vê em Silêncio, um filme que, tal qual seu título já anuncia, pouco se explica e muito se diz.
O que é a religião, senão o ‘alimento da alma’? Ou seria, como outros preferem acreditar, ‘o ópio do povo’? Independente do que se pense a respeito, uma coisa é certa: este é um assunto controverso. E Scorsese, filho de uma fervorosa família católica, sabe disso muito bem. Tanto que o tema percorre quase toda a sua filmografia. Desde os garotos sem rumo do início da carreira à mãe solteira que precisa ter fé que conseguirá dar um jeito na situação de sua família, a determinação fervorosa do lutador de boxe em busca da vitória ao velho jogador querendo fazer as pazes consigo mesmo, dos irmãos de profissão que vão do auge à queda juntos até os tratos sociais de um século atrás que vão sendo postos à prova um a um, das gangues que se formam por afinidade na construção de uma cidade até o homem que acredita ser capaz de enganar a tudo e a todos, estes são apelos que, de uma forma ou de outra, sempre acabam sendo reconhecidos nas histórias pelas quais tem maior apelo.
Mas se sabe, também, que nem sempre o tema surgiu de forma tão dissimulada. A ‘trilogia religiosa’, por assim dizer, teve início ainda nos anos 1980, com A Última Tentação de Cristo (1988), quando ousou questionar dogmas nunca antes abordados. O cristianismo entrou em polvorosa, sendo que tudo que fez foi oferecer dúvidas e possibilidades, nunca certezas. Após muitos protestos e poucos diálogos, Scorsese voltou-se ao Oriente uma década depois em Kundun (1997), quando decidiu investigar uma filosofia que poderia lhe parecer distante, apenas para se revelar, ainda que lentamente, mais próxima do que imaginava e mais semelhante daquela que talvez fosse a ideal – se é que é possível tal determinação. Pois é do resultado destas duas forças que surge Silêncio: o encontro do cristianismo com o modo oriental de ser e existir. Afirmar sem indagar, e a partir disso tudo aceitar, ou viver de acordo com o que se tem ao alcance, possibilitando um novo a mais cândido olhar sobre as coisas e suas relações? As opções podem não soar muito diversas, mas oferecem possibilidades radicais.
O cinema de Martin Scorsese é masculino. Robert De Niro e Leonardo DiCaprio são seus protagonistas mais facilmente reconhecíveis, e através deles já nos confrontamos com as vontades, loucuras e conquistas de Johnny Boy, Travis Bickle, Jimmy Doyle, Jake LaMotta, Rupert Pupkin, James Conway, Max Cady, Ace Rothstein, Amsterdan Vallon, Howard Hughes, Billy Costigan, Teddy Daniels ou Jordan Belfort. Ainda assim, poderíamos ir além. Figuras como J. R., Big Bill Shelly, Paul Hackett, Vincent Lauria, Newland Archer, Frank Pierce ou Hugo Cabret, com todos os seus sonhos e decepções, descuidos e enganos, também podem oferecer uma intrigante e, ao mesmo tempo, instigante jornada clássica do herói. O padre Rodrigues não é diferente. Ele também acredita no que lhe parece ser o correto, sem parar um só instante para olhar para os lados e analisar outras opções. Sua visão é direta e obstinada. Só que há muitos tropeços em seu caminho. Principalmente aqueles que dará em suas próprias pernas.
Os homens de Scorsese, assim como Jesus Cristo, em uma última instância, faziam somente o que pensavam ser o certo. Não se curvam aos interesses de outros – e, se assim o fazem, é porque, antes de qualquer coisa, esta é também a posição que escolhem assumir. Rodrigues, vivido com impressionante entrega por Andrew Garfield – em uma composição ainda mais impressionante que a por ele vivida em Até o Último Homem (2016), filme que lhe rendeu sua primeira indicação ao Oscar – está disposto a abrir mão de tudo que tem e possui – o que não é muito, é preciso reconhecer – para salvar seu mestre, aquele que lhe deu as primeiras lições e foi seu guia nos passos iniciais da fé. Mas tamanha abdicação tem a ver com o outro ou consigo mesmo? Estaria ele prestes a se atirar no desconhecido em um gesto de total abnegação ou, muito pelo contrário, indo em busca das raízes pelas quais foi criado, evitando colocar em risco aquilo em que sempre acreditou – a base, enfim, na qual construiu o homem que é?
O padre Ferreira (Liam Neeson) está há anos desaparecido. A última notícia que se tem dele é, em uma missão catequizadora no Japão do século XVII, após muitos dos seus irmãos terem sido mortos, ele teria abdicado da fé que o movia para salvar o pescoço que o sustenta e estaria, afirmam as mensagens desencontradas que retornaram a Portugal, vivendo como um deles, tendo adotado, inclusive, mulher, filhos e até um nome japonês. Rodrigues e seu colega, Garupe (Adam Driver), se recusam a acreditar neste cenário. E, para isso, estão dispostos a empenhar a mesma trajetória feita pelo homem que tanto os ensinou anos antes. O Japão não está apenas do outro lado do planeta – ele é, por si só, um mundo à parte. É uma outra realidade, dona de tradições, costumes e um modo de ser muito particular – e distante daqueles praticados no Ocidente. Chegar lá determinados a empenhar a palavra de Deus pode representar a salvação para muitos. Para outros tantos, no entanto, é uma ofensa de altíssima ordem. Principalmente aos líderes e governantes locais. Aos aldeões não lhes é permitida a liberdade religiosa. É preciso refutar e destruir símbolos, anseios e vontades contrárias àquela de ordem maior. Rodrigues e Garupe precisarão, portanto, agir nas sombras. Não podem ser notados. O silêncio lhes é ouro.
E quando a palavra não existe, como propagar ensinamentos? Através do exemplo. E ambos os lados da questão sabem disso. Quando questionados se, ao serem acuados, devem ou não pisar sobre a imagem de Jesus, por exemplo, os padres se contradizem. “Pise logo e salve sua pele”, afirma Rodrigues. “Mantenha sua fé que Deus proverá”, afirma Garupe. Nem mesmo aqueles juntos em comunhão compartilharão dos mesmos ideais por muito tempo. A separação será inevitável, não tanto por atritos, mas para testarem a si mesmos e aos que seguem neles acreditando. É preciso discrição. Mas por quanto tempo essa prevalecerá? O diretor, também autor do roteiro ao lado de Jay Cocks (indicado ao Oscar por A Época da Inocência, 1993, e por Gangues de Nova York, 2002), parte do livro de Shûsaku Endô para testar os limites da fé destes homens falhos e repletos e imperfeições. Em suas arrogâncias doutrinadoras, são colocados à prova pelas mais simples das verdades. E quando a lei do mais forte começa a ditar seus destinos, precisarão decidir o que lhes é mais importante: a vida que está ao seu alcance ou aquela com a qual apenas sonhou, sem nunca chegar perto de concretizar.
Andrew Garfield tem construído sua carreira como o injustiçado que tenta fazer o que é certo. Seja o jovem estudante de Leões e Cordeiros (2007) ou o ajudante de O Mundo Imaginário do Doutor Parnassus (2009), o brasileiro investidor de A Rede Social (2010) ou o jovem clone de Não Me Abandone Jamais (2010), ele imortalizou essa persona na cultura pop como O Espetacular Homem-Aranha (2012). Filmes como os recentes 99 Casas (2014) ou o citado Até o Último Homem apenas reforçam esse imaginário. É fácil, portanto, vê-lo como o padre Rodrigues. A questão, aqui, é que nem ele mais sabe qual caminho seguir. Em Silêncio, o protagonista até pode surgir como a voz da razão, mas essa vai, gradualmente, sendo substituída por outras mais urgentes: sobrevivência, fidelidade, respeito. Cumprir seu propósito original talvez não seja mais tão importante quanto reconhecer e aprender a se adaptar aos novos rumos que irão se impondo em sua frente. Garfield é um ator com a fragilidade suficiente para se curvar, mas dono também da determinação exigida para que volte a se levantar sem soar piegas ou gratuito. É um homem do seu tempo, filho do século XXI. Não é bruto, como De Niro, nem voraz, como DiCaprio. É másculo, mas também feminino. E é desse conjunto que irá prover os elementos necessários para seguir em frente.
Martin Scorsese não faz escolhas gratuitas. Das sombras e névoas que pontuam sua brilhante fotografia – merecidamente reconhecida com uma indicação ao Oscar – de onde algo está sempre prestes a surgir, como se revelado naquele instante, a um texto – premiado no National Board of Review – preciso em suas palavras e ainda mais em seus intervalos, Silêncio é um filme sobre o não dito, sobre a força da ausência e o reconhecer de instintos maiores. Impor vontades por muito pode ter sido a solução, mas é curioso como foi olhando para trás que o diretor buscou esse exemplo de resiliência e resignação, tão apropriado para os dias de agora. Pois, no final das contas, e esta parece ser sua maior e mais sincera preocupação, o que importa, de fato, não é o dito ou feito, e sim aquilo sentido e guardado dentro de si. As contas, afinal, são prestadas não com os outros, mas consigo mesmo.
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