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Crítica


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Sinopse

O documentário ilumina a personalidade e a arte do grande pintor brasileiro Siron Franco, articulando com liberdade um arquivo inédito com novas filmagens. O filme coloca o relacionamento do artista com seu universo criativo sob a ótica do tempo.

Crítica

Quando Siron Franco aparece em tela, na primeira cena, dissertando sobre o caráter animalesco do ato de bocejar, mesmo o espectador que desconheça o artista terá a certeza de se encontrar diante de uma personalidade singular. Ele segue apresentando sua visão sobre o mundo, a arte, a pintura. Elogia as pessoas “selvagens” como a mãe e a avó. Explica, com a fluidez de uma conversa entre amigos, a decisão de pintar camada sobre camada, a relação com a arte figurativa, os quadros religiosos criados apenas para ganhar dinheiro. Estes trechos são articulados menos pela linearidade histórica do que por uma espécie de fenomenologia do olhar, um estudo sobre a maneira como Siron interpreta a natureza, e como esta análise se traduz em tela. Em determinado momento, ele inclusive sugere uma participação ativa do público (“Meus quadros precisam de você”), enquanto provoca nosso olhar domesticado. “Eu quero te ensinar a ver!”, explica.

Os diretores André Guerreiro Lopes e Rodrigo Campos adotam um caminho interessantíssimo: eles permitem que Siron narre a sua própria história, sem recorrer a especialistas da arte nem figuras próximas do pintor – com exceção de uma rápida aparição de Ferreira Gullar. Assim, evita-se o tom laudatório comum às biografias de gênios da pintura para privilegiar o aspecto de confissão, uma releitura da própria carreira com o devido distanciamento adotado pelo artista. Iconoclasta e extrovertido, Siron nunca se preocupa em sublinhar seus méritos, e tampouco tenta se inserir dentro de um grupo artístico específico. O filme, em paralelo, evita examinar o cenário plástico em que aquelas obras existiram, concentrando-se na relação íntima entre criador e criatura.

Felizmente, os cineastas evitam a estrutura clássica, adotando ferramentas mais instigantes ao olhar, em paralelo com a subversão proposta por Siron. Esta importante adequação entre as formas do filme e da pintura ocorre através da dissociação entre som e imagem (Siron torna-se narrador em off da própria história), a eliminação de marcos temporais (somem os letreiros com datas), as cenas de pintura retratadas de trás para frente (ou seja, as camadas de tinta do quadro pronto desaparecendo, até revelarem a tela em branco) e às pinturas em vidros transparentes, para o espectador acompanhar a pincelada em tempo real – em procedimento análogo ao de O Mistério de Picasso (1956). Se o artista define seu gesto como um “soterramento”, em virtude do acúmulo de camadas de pintura, o filme responde com seu avesso: a arqueologia das imagens.

O resultado é uma fascinante busca pela compreensão do gesto criativo: o que teria levado Siron a pintar desta maneira, de modo tão intenso e febril? Que características em sua vida (a infância, curiosamente, é citada apenas no final) teriam moldado este ponto de vista sobre a religião, a morte, a cultura indígena? Ou seja, como se forma um artista, não enquanto profissional, mas enquanto ser dotado de uma capacidade alheia à maioria das pessoas? Não há respostas claras para estes questionamentos, é claro, porém os diretores propõem uma bela investigação através da psique do artista, situando-se perto de Siron e suas singularidades, sem transformá-lo em figura de exotismo. Esta é a vantagem dos filmes feitos sobre artistas ainda em vida, que podem olhar a si mesmos, confrontando o presente e o passado, reavaliando obras e ressignificando a época em que viveram.

Siron. Tempo Sobre Tela se encerra com a relação cíclica entre arte e artista. Quem domina quem, afinal? “O artista é vítima do desejo de criar”, argumenta o pintor, que se tranca dezenas de horas seguidas no ateliê, pintando e repintando os quadros, de dia e de noite. O ato de criação se torna compulsivo, ao invés de uma vocação ou execução técnica. Até por isso, quando tem a oportunidade de assinar uma obra antiga, Siron não se contém e a repinta, para desespero do proprietário. Em outro momento, afirma que a descoberta das estampas de animais trouxe novo fôlego à carreira: “A onça me salvou”. Nesta complexa relação entre Siron e sua obra, os quadros se tornam figuras humanizadas, mutáveis, e portanto jamais definitivas, contrariando a noção da arte plástica enquanto registro e sintoma de seu tempo. O documentário encanta por reestruturar a hierarquia do processo de criação (Siron não tem condições financeiras de comprar os próprios quadros) enquanto propõe sua versão de forma cinematográfica iconoclasta. Ao final, entre as cenas do avesso e os quadros repintados, cinema e artes plásticas unem-se pelo desejo de remodelar o tempo.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
8
Alysson Oliveira
8
MÉDIA
8

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