Crítica
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Sinopse
Crítica
Ainda que não se perceba a princípio, Sleight: O Truque Perfeito (2016) constitui o filme de origem de um super-herói. A introdução nos revela as capacidades extraordinárias de Bo (Jacob Latimore), jovem cujos poderes sobrenaturais são logo deixados em segundo plano pela trama. Curiosa escolha do diretor J.D. Dillard: podendo investir no espetáculo a partir da telecinesia do garoto, prefere abordar este fato como se fosse um aspecto qualquer de seu corpo. Sim, o estudante faz levitar objetos, esconde carteiras e tira celulares dos bolsos com o poder do pensamento, mas este não seria um atributo digno de nota. O filme prefere se desenvolver enquanto drama sobre um jovem órfão, muito talentoso para os estudos, porém levado ao tráfico de drogas para sustentar a si mesmo e à irmã pequena. O verdadeiro conflito, no caso, se encontra na desigualdade social e na falta de oportunidades para jovens à margem do sistema. Perto desta situação, as habilidades do jovem mágico, que lhe permitem ganhar alguns trocados na rua, literalmente não chamam a atenção. Os amigos e vizinhos, cientes destes poderes injustificáveis para a mágica, tampouco tentam compreendê-la. A fantasia constitui um fato natural.
Este aspecto produz as maiores qualidades, e também principais fraquezas do filme. Por um lado, é ótimo encontrar jovens cineastas capazes de inserir a fantasia, tão comumente associada ao escapismo, dentro de uma realidade brutal e urgente. Quando Bo utiliza seus poderes, não há luzes mágicas, trilha sonora grandiloquente, nem amplos movimentos de câmera. Quase ninguém percebe os truques além do espectador, e os superpoderes se tornam inúteis diante da violência praticada pelo líder do tráfico. Por outro lado, o roteiro evita explorar a extensão destas capacidades excepcionais. Por que razão um garoto tão inteligente não utiliza a levitação ou desaparecimento de objetos para outras finalidades? Num momento de pânico, ele facilmente obtém US$ 9 mil de um cassino. Tendo acesso a estes meios, podendo literalmente desaparecer com drogas e desatar algemas, por que teria entrado para o tráfico? Como ninguém jamais suspeitou da imensa ferida de cobre e os fios saindo do braço dele? As características imputadas a Bo permitiriam privilégios que o roteiro evita utilizar, para poder situá-lo na posição de vítima das circunstâncias. Vale dizer que o rapaz vende drogas, porém manifesta mais de uma vez o desconforto com essa prática, além da aversão pela violência e o desejo de abandonar o tráfico. Traficante sim, porém com princípios.
Ao mesmo tempo, Dillard revela-se corajoso na construção de cenas fortes. Seria compreensível que o filme adolescente atenuasse a representação da violência para se adequar ao público-alvo, no entanto o cineasta permite que duas cenas de enfrentamento com adversários cheguem muito perto do cinema de horror, em sequências longas e sangrentas. A convivência do adolescente solitário com a irmã poderia ser temperado pela proteção do Estado (assistentes sociais, pais adotivos) ou mesmo alguma figura paterna e materna mais velha, no entanto, o roteiro fornece a Bo apenas a presença de uma vizinha (a humorista Sasheer Zamata, muito bem adaptada ao drama) ciente do tráfico e tolerante com estas práticas. Seria quase impossível fugir ao moralismo, entretanto nenhuma pessoa perto do protagonista (vizinha, namorada, professor) contestam suas atividades. Há coragem no olhar cru a uma vida de abandono, ainda que fuja a processos jurídicos verossímeis – duas crianças dificilmente criariam sozinhas uma à outra. O projeto estrelado por atores negros e latinos sublinha a relação entre raça/origem e posição social, embora o faça de maneira orgânica, adaptada à narrativa de passagem à vida adulta.
No papel principal, Jacob Latimore se mostra confortável na fronteira entre drama, melodrama, ficção científica e humor. Ele não resume o personagem ao mártir, tampouco o transforma em super-herói virtuoso. O garoto possui força no olhar e despojamento para os diálogos, o que também contribui a aproximar o mundo da magia do mundo real. O ator descreve os circuitos implementados no corpo de Bo como quem apresenta a cicatriz de um acidente qualquer. Infelizmente, o mesmo não pode ser dito do elenco de apoio, muito mais fraco. Dulé Hill se revela uma escolha improvável para o perigoso líder do tráfico, distante dos habituais papéis do ator. O resultado é uma composição desconfortável, beirando a caricatura. Seychelle Gabriel possui a função ingrata de “namorada-do-herói”, aparecendo de lugar algum, apaixonando-se à primeira vista e apoiando absolutamente qualquer atitude dele. A jovem Holly não possui vida própria, servindo para dar a réplica ao protagonista. Ao apostar na figura clássica do “escolhido” – o garoto órfão, dotado de poderes únicos – o filme encurta demais a construção dos personagens ao redor, limitando-se a aparecer quando Bo precisa contracenar com alguém.
Em paralelo, o roteiro incomoda pelas ingenuidades convenientes demais na segunda metade da narrativa. Bo provoca pessoas perigosíssimas, mas acredita estar seguro ao voltar para casa. Diante de provas da perseguição contra sua família, ainda assim manda a irmã pequena sozinha à escola. A insistência sobre o pôster de Houdini também se torna vazia, porque o símbolo jamais se desenvolve ao longo da trama. A esperteza do rapaz é subestimada pela trama que prefere aprofundar os perigos e a tensão a fornecer um rapaz astuto. Mesmo assim, a conclusão ambiciosa (suspendendo um conflito em pleno acontecimento, para abrir brechas à sequência) encerra uma produção competente em termos de direção de fotografia, direção de arte e montagem. Sleight: O Truque Perfeito possui ritmo agradável, desenvolvimento clássico porém funcional do herói, e uma atmosfera de universalidade louvável à premissa de um jovem negro dotado de superpoderes. A história resgata o teor de tantos projetos que pré-adolescentes absorvem com prazer durante a tarde, na TV aberta, sobre aventuras de adolescentes descobrindo o seu valor no mundo enquanto se tornam heróis de si mesmos. Em certa medida, o filme vai ainda mais longe do que Kin (2018), outra história social de ficção científica liderada por um garoto negro, porém excessivamente encantada com os efeitos especiais. Apesar do suspense e dos objetos levitando, Dillard mantém seu filme íntimo e acessível.
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