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Crítica


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Sinopse

Homem casado e pai dedicado, Bill vive tranquilamente como comerciante de carvão na Irlanda dos anos 1980. No entanto, sua vida está prestes a mudar, principalmente quando os segredos de sua cidade começam a vir à tona.

Crítica

A questão está longe de ser inédita. No entanto, não por isso pode ser menosprezada, tanto no cinema, como na vida em geral. O caso das irmãs Madalena foi um escândalo que por décadas infernizou a vida de milhares de garotas na Irlanda, recebendo-as em nome de uma moral enviesada – jovens que haviam engravidado de seus namorados e que, para se livrarem da condenação de vizinhos e familiares, eram enviadas a esses conventos, só que, uma vez lá, não apenas tinham seus bebês sequestrados e vendidos para outras famílias, como eram tratadas com desprezo e abuso pelas religiosas, como se escravas fossem – ao mesmo tempo em que serviam de faixada para os horrores que se sucediam por detrás de seus muros. Se outros filmes já abordaram esse episódio – o último destes lugares foi fechado em 1994, ou seja, há mais de trinta anos estes traumas têm sido investigados e expostos ao público – há de se valorizar a decisão de Small Things Like These optar por um olhar mínimo capaz de compreender uma visão macro da questão. Trata-se de um esforço isolado, mas suficiente para transformar um todo. Não do conjunto, mas daquela que a ele estendeu a mão num pedido de ajuda. Da mesma forma, eis um filme que parece não ter como missão mudar as coisas, satisfeito por tocar o íntimo de quem dele se aproximar, com cuidado e sensibilidade.

Cillian Murphy e o diretor Tim Mielants, no set de Small Things Like These

Small Things Like These pode ser traduzido para o português, em uma versão direta, como Coisas Pequenas Como Essas. A ideia é a mesma daquela empregada ao se dirigir a perfumes (“as melhores fragrâncias vêm nos menores frascos”): sem escândalo ou alarde, mas o bastante para causar impacto. Senão de forma ampla, ao menos naqueles em sua rota de colisão. Neste caso, o peso desse mundo se concentra sobre as costas encurvadas de Bill Furlong, o entregador de carvão de uma pequena cidade irlandesa. Sua rotina é extenuante: acorda cedo, trabalha o dia inteiro, visita seus clientes, e à noite, quando enfim volta para casa, passa tanto tempo com a esposa e as filhas como o que dedica à pia de entrada, na qual se ocupa em limpar a sujeira que se acumulou sobre suas mãos e rosto ao longo de uma jornada de horas sem descanso. Aquele ritual tanto o libera dessa sujeira que o rodeia, como o purifica do mal que se esforça em deixar do lado de fora do lar. Espaço seguro e que, com muito esforço, conseguiu construir para sua família. Bill não está mais sozinho, por mais que, em diversos momentos, seja dessa forma que ainda se sinta.

Baseado no romance homônimo de Claire Keegan (mesma autora do conto que deu origem ao drama A Menina Silenciosa, 2022, indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional), Small Things Like These fala tanto do passado desse homem como do presente não apenas que ele vivencia diariamente, mas também daquilo que pretende deixar como exemplo e herança. Filho de uma dessas meninas, teve tanto a sorte da mãe ter sido acolhida por alguém que não a julgou com a mesma severidade católica imposta a tantas outras em situação semelhante, como o azar de vê-la partir ainda muito cedo, quando tinha não mais do que vinte e cinco anos. Criado por essa mulher que os acolheu (participação discreta, porém marcante, de Michele Fairley, a Catelyn Stark de Game of Thrones, 2011-2013), Bill cresceu a ponto de também ter gerado, ao lado da esposa, quatro garotas. Em certo momento, alguém irá lamentar o infortúnio dele por não tido um rapaz que pudesse carregar adiante o sobrenome. Sua resposta não poderia ser mais esclarecedora: “o meu nome de família é o da minha mãe”. Quem sabe o que o amanhã reserva para as suas meninas?

Bill Furlong reflete uma imensa profundidade graças à complexa construção psicológica conduzida por seu intérprete, Cillian Murphy. Assim como fez em alguns dos seus mais elaborados desempenhos, como os vistos em Oppenheimer (2023) ou na série Peaky Blinders (2013-2022), ele a tudo observa, mesmo quando sua presença não é percebida, e somente aos poucos, sem exageros ou atropelos, é que a ação por ele conduzida encontrará espaço para se manifestar. Bill sabe o que acontece naquela casa liderada a mão de ferro por irmãs cheias de regras e de poucos sorrisos. Não apenas por ter sido filho de uma jovem que enfrentou tormento similar, mas pela realidade que encontra nas ruas a cada novo dia. Porém, tal qual o quebra-cabeças que ganhou na infância como presente de Natal, a única lembrança que guarda com carinho dessa época, ele também terá que montar o quadro que diante dele se desenvolve, até decidir o que fazer. O quanto está em jogo? Que diferença ele pode fazer? De que forma uma atitude sua poderá impactar no futuro daquelas que dele dependem? Como fazer frente a uma pressão religiosa e social tão sufocante, como a exercida pela líder daquela ordem (Emily Watson, assustadora em sua falsa bondade e temida por cada gesto ou olhar que com paciência desenha)?

Cillian Murphy no set das filmagens de "Small Things Like These"

É curiosa a inclusão no elenco de Eileen Walsh (no papel de Eillen, a esposa de Bill). Em sua filmografia, há a citação, ainda no início de sua carreira, do drama Em Nome de Deus (2002), de Peter Mullan, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza. Este talvez seja um dos mais poderosos relatos do que as tais Irmãs Madalena eram capazes de fazer com aquelas que afirmavam acolher em bondade, mas às quais destinavam apenas terror e violência. Small Things Like These não tem a mesma força, mas é provável que também não tenha sido essa a intenção do diretor Tim Mielants (Caminhos da Sobrevivência, 2023). Tal ideia se mostra sólida na escolha não apenas de um protagonista masculino, mas também na amplitude desse personagem, uma figura quase invisível – a sujeira que o cobre também força os demais a lhe virarem o rosto, por mais que dele dependam para se aquecerem diante do rígido inverno – mas capaz, se não de alterar a forma como as coisas vem sendo feitas até então, ao menos de entender a diferença entre o certo e o errado. Dentro de um cenário maior, como bem se sabe ter sido o dessa situação, os efeitos podem ser quase nulos. Mas não inexistentes. Um passo insignificante para muitos, mas transformador para quem, de fato, interessava. Tal qual este pequeno relato de redenção, tanto para quem estende a mão, como para aquela que, quando não mais lhe restavam esperanças, por fim é acolhida.

Filme visto durante o 74º Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, em fevereiro de 2024

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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