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Sinopse
Crítica
Para muitos, o plano-sequência é um fetiche ou, ainda, um desafio a ser superado como prova de habilidade. Afinal de contas, ele demanda um esforço enorme de produção para que toda a história seja contada em apenas um take. Nada de gritar “corta” se algo não sair exatamente como o planejado ou sequer ter diversas alternativas para decidir na hora da montagem. Às vezes essa escolha soa exibicionista, noutras como algo absolutamente adequado para a captura de uma urgência do tempo real que beneficia determinadas histórias. Felizmente, Soft & Quiet pertence ao segundo grupo, àquele que utiliza o plano-sequência para potencializar a tensão e enfatizar uma escalada vertiginosa de violência. A diretora Beth de Araújo (norte-americana filha de pai brasileiro) começa desenhando uma circunstância aparentemente banal a partir da reunião de mulheres com interesses em comum no andar superior da igreja de uma cidade pequena. Mas, não sem antes plantar no espectador uma pequena desconfiança ao mostrar a protagonista, a professora primária Emily (Stefanie Estes), praticamente doutrinando um aluno a oprimir a faxineira não branca de sua escola. Tudo se torna mais claro com a revelação da suástica nazista entalhada sobre a clássica american pie, a iguaria que se tornou ao longo dos tempos um símbolo da tradição estadunidense. Essa sobreposição de ícones é autoexplicativa.
Seguindo com a câmera na mão e ininterruptamente, Beth primeiro deflagra a violência no âmbito discursivo, construindo um panorama tétrico em que donas de casa e trabalhadoras de classe média derramam preconceitos no ambiente paroquial como se estivessem revelando verdades incontestáveis. O diálogo estabelece um crescendo de absurdos, com mães de família e solteiras à procura de um marido (outro sinal de alinhamento ao conservadorismo), sem que haja alguém em cena para contradizer as manifestações racistas e xenofóbicas proferidas entre as mordidas no símbolo gastronômico de um Estados Unidos obscurantista. De certa forma, é como se a realizadora criasse um ambiente propício para o espectador assumir o papel desse contraponto de bom senso, sobretudo diante de tantos disparates naturalizados ultimamente pelo crescimento dos discursos de ódio como tentativa de manutenção de certas supremacias. Até mesmo porque poucos são os “censores” dessas mulheres dispostas a se organizar em torno de um pensamento fundamentalista/fascista. Na verdade, apenas o padre e o marido de Emily demonstram alguma contrariedade diante desse tipo de manifestação, o que pode ser problematizado – afinal de contas, porque somente dois homens se encarregam de ter atitudes minimamente reprobatórias? Levando em consideração a direção feminina, temos um porquê.
Assim como a brasileira Anita Rocha da Silveira fez em Medusa (2022), com seu grupo de fanáticas religiosas dispostas a atos violentos para combater mulheres de pensamentos menos obscuros, Beth trata de apresentar em Soft & Quiet uma circunstância ainda mais aterradora justamente por conta do engajamento feminino no discurso agressivo que frequentemente coloca uma marca de alvo na cabeça das mulheres. A certa altura desse papo de comadres neonazistas, uma delas diz “feminina, mas não feminista”, assim atacando diretamente os preceitos daquelas que lutam por igualdade de gênero, voluntariamente se colocando no papel de submissão preconcebido por uma sociedade patriarcal. É muito claro que Beth enxerga essas personagens como subprodutos desse mundo masculino que elegeu desde os primórdios os homens como lideranças. Trabalhando bem as restrições espaciais e de movimento, decorrentes da utilização do plano-sequência – por vezes supomos que apenas uma personagem é enquadrada para as demais serem recolocadas dentro da coreografia –, a cineasta acompanha a transição dessa violência verbal para as vias de fato, assim se encarregando de sublinhar que os discursos de ódio matam. Emily e suas amigas cada vez mais inflamadas por concepções supremacistas decidem colocar em prática aquilo que suas palavras anunciam um pouco antes.
Soft & Quiet, então, tem a primeira parte, a da reunião que nos oferece o contexto; a segunda, a do enfrentamento, na qual fica clara a predisposição das representantes da branquitude pela destruição alheia; e a terceira, em que o assédio agressivo escala até se transformar em tragédia. Enquanto a câmera segue capturando expressões de ódio, agressões a duas jovens não brancas que “ousam” atravessar o caminho desse clube neonazista, a protagonista começa a desmoronar. Se nas fases da apresentação e do primeiro enfrentamento ela parecia inabalável, isso simplesmente implode aos poucos quando a brutalidade faz vítimas fatais e as intenções cobram preços caros. Se há um pequeno ponto falho nesse longa-metragem, cujo destaque maior é a excelência na construção e da manutenção da tensão, é exatamente a fragilidade dessa mudança de status. A personagem também poderia ser um pouco melhor elaborada a partir da sua impossibilidade de engravidar (algo que poderia cair na conta da descendência, obsessão dos idiotas que acreditam numa “raça superior”). Mas, no fim das contas, Beth de Araújo prefere traçar um panorama mais coletivo e menos individual desse avanço da xenofobia e do racismo, comportamentos inflamados por várias figuras públicas que não têm pudores de cometer crimes. Aqui a cineasta não vai buscar no extraordinário elementos para amedrontar a plateia. Ela captura o estado das coisas que testemunhamos diariamente nas ruas e nas redes.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 8 |
Ticiano Osorio | 9 |
MÉDIA | 4.5 |
Impossível assistir ao filme sem sair da sala de cinema chocado, enojado, com repulsa do ser humano dito de bem que se acha melhor que seu semelhante. A arte do plano sequência do filme é a capacidade de aprisionar o espectador como mais um participante daquele grupo doentio. Filme duro e necessário.