float(4) float(1) float(4)

Crítica


5

Leitores


1 voto 8

Onde Assistir

Sinopse

Um pai recém-separado, que não consegue se reconectar com a filha de dez anos, é obrigado a viajar para o interior do país em busca do próprio pai que o abandonou quando criança e agora sofre com problemas de saúde. O convívio forçado dos três ao longo de uma viagem será a chance inesperada para reatarem os laços.

Crítica

Sol (2021) constitui um drama no sentido mais clássico do termo. Ele é movido por uma jornada sentimental em torno da doença e a provável morte de Theodoro pai (Everaldo Pontes), que abandonou o filho Theo (Rômulo Braga) na infância, e nunca foi apresentado à neta Duda (Malu Landim). Uma notícia sobre o estado de saúde do homem idoso motiva um road movie entre pessoas que se desgostam, mas precisarão conviver ao longo do trajeto. Este é o único motor de conflito do roteiro que faz o possível para colocar a vida lá fora em parênteses para os personagens terem o tempo necessário de brigarem, chorarem, fazerem as pazes. Assim, o arquiteto está de férias, a filha nunca recebe ligações da mãe, o hospital libera o homem idoso sem assinaturas, o remédio esquecido não provoca consequências. Ninguém precisa voltar para casa; o dinheiro é suficiente e as questões de apropriação imobiliária são abandonadas pela trama. O filme ignora qualquer aspecto para além do relacionamento entre pai, filho e neta dentro de um carro. Eles efetuam um trajeto longo entre o hospital numa cidade pequena do interior até a casa de repouso em Salvador - mas ganha um doce quem adivinhar o que acontecerá com estes planos no final.

A diretora e roteirista Lô Politi teria diversas possibilidades narrativas a partir desta premissa. A chegada da garotinha urbana e skatista numa cidade interiorana geraria um choque de culturas. O confronto de gerações poderia opor a masculinidade progressista de Theo aos tempos conservadores de Theodoro. A incursão pelo interior árido abriria margem para conhecer novos rostos, revelar vidas e rotinas de um Brasil pouco conhecido na mídia e no cinema nacional. Ora, nada nisso é explorado de fato: o trio sustenta a posição de protagonistas numa dinâmica desprovida de coadjuvantes (com exceção da ótima Luciana Souza no terço inicial), sem estabelecer contato afetivo com os espaços por onde atravessam. A cultura baiana é deixada de lado em prol de metáforas simples: cada vez que a autora precisa de um instante de poesia, recorre ao mar, seja nos insistentes flashbacks da infância do protagonista, seja com os olhares perdidos ao mar no horizonte. As águas, enquanto metáfora de abertura ao desconhecido e ao novo (as mesmas ondas que trazem o peixe e a diversão podem nos afogar) se convertem numa simbologia unívoca, utilizada ao limite do esgotamento. O longa-metragem começa e termina com o mar, voltando a ele quando precisa de novas doses de delicadeza.

A delicadeza é algo que falta ao roteiro, movido por artifícios inverossímeis. Ao invés de aprofundar conflitos inerentes à situação destas três pessoas, busca ferramentas externas que venham a provocar tensão: a menina desaparece um segundo após colocar os pés na feira, e na cena seguinte, rapazes tentam roubar uma estátua de grande valor afetivo apenas pelo prazer de fazê-lo (aparentemente, ninguém pretendia lucrar com a obra de arte). Os pequenos conflitos soam acessórios - caso do acidente devido ao uso de celular ao volante, do carro de som anunciando um sepultamento no instante em que Theo chega à cidade do pai doente, e da tosse nervosa da menina, mal dirigida e desenvolvida na trama. Para forçar os personagens a pararem durante a viagem, poderiam pensar em ligações telefônicas e almoços, mas exceto pela cena estranha do leite com banana, a verdadeira obsessão se encontra nas paradas para o banheiro. Hesitante quanto à função narrativa de Malu, o roteiro a encarrega de pedir para ir ao banheiro inúmeras vezes, quando o pai inventa o recurso bizarro de pedi-la para descrever cada gesto em voz alta. Em alguns instantes, indeciso sobre como lidar com a garota, o arquiteto apenas dispara um “Fica aí!”, e parte para resolver sozinho suas pendências com o homem idoso. 

Pela ausência de construção psicológica destes personagens fora do dilema principal, a tentativa de sutileza e emotividade soa limitada. Rômulo Braga, um dos atores mais talentosos de sua geração, capaz de um trabalho variado de corpo e voz, recebe um protagonista emburrado, com poucas chances de transparecer o trauma para além dos flashbacks e da voz nervosa. Everaldo Pontes faz maravilhas com o avô calado e de olhares perdidos, expressando variações preciosas quando necessário. No entanto, falta ao projeto oferecer a ambos metáforas de afeto, de raiva, de rancor, ao invés de pedir que verbalizem estes sentimentos de maneira explícita. Tentativas frágeis como a “massagenzinha no coração” traduzem a dificuldade de conceber um respiro fora dos quiproquós esperados da viagem. Sequer sabemos quanto tempo precisam passar juntos, qual a distância do percurso, e sobretudo, quanto lhes falta até a chegada ao asilo. Politi restringe a percepção do tempo e espaço, dois elementos essenciais de um road movie. Na falta de uma vida paralela, torna-se inevitável a redenção e aproximação - o que mais teriam a fazer durante o trajeto?

Apesar das fragilidades, Sol transparece a vontade de investir num cinema clássico-narrativo e adulto, avesso à aceleração pop, à leveza forçada por tiradas cômicas e a outros recursos comuns aos road movies de apelo popular - o pneu não fura no meio do caminho, o que constitui praticamente uma revolução dentro das regras do gênero. Lô Politi busca uma forma de cinema diferente da intensidade de Jonas (2015), calibrando sua equipe para um trabalho competente, ainda que discreto, de direção de fotografia e captação de som. A montagem teima em construir habilmente as elipses ou ações paralelas, mas fornece um ritmo fluido - as fragilidades decorrem da concepção e do roteiro, ao invés da realização. Além disso, é louvável o desenho de uma figura paterna dotada de relação carinhosa e discreta com a filha, longe das idealizações do pai-herói ou do pai ausente e desastrado. Nem Theodoro pai se converte num vilão desalmado, ou no senhor arrependido. Há força nos silêncios, algo valioso para esta forma de cinema internalizado. É sempre um prazer assistir a Rômulo Braga e Everaldo Pontes em cena, em chaves opostas àquelas que se esperaria deles: o sutil Rômulo é conduzido à exteriorização, enquanto o explosivo Everaldo recebe a tarefa do minimalismo. Sol oferece uma experiência cinematográfica modesta, porém mergulha pelo terreno fundamental das produções que buscam dialogar simultaneamente com público e crítica.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2021.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *