Sinopse
Solange retorna à sua cidade natal cinco anos depois de abandonar todos os pertences para trás. No contato com velhos amigos, nas casas de quem seus livros, discos e roupas ficaram, nem sempre as coisas são como ela imagina. Selecionado para o 8ª Cine Jardim (2024).
Crítica
Solange (Cássia Damasceno) está de passagem pela cidade em que construiu uma parcela de sua vida. Mas que cidade é essa? O que motivou a mudança? Nada disso é explorado em Solange, conto intimista em forma de filme no qual importam menos os fatos e mais as sensações causadas pelos reencontros. A protagonista está passando uns tempos na casa da amiga que se atrasa para a parabenizar pelo aniversário. Dessa pequena frustração esperada em diante ela vai transitar por lugares onde deixou caixas com pertences, ou seja, parte em busca de resgatar aquilo que ficou para trás, talvez, por não ser tão urgente para a sua nova rotina. Os cineastas Nathália Tereza e Tomás von der Osten (que também assinam a fotografia) abordam essa pequena jornada muito de perto, colando a câmera na personagem principal como se nada mais valesse tanto quanto os sentimentos impressos em seu semblante. No contato com a amiga “furona” fica evidente o desconforto nessa obrigatória reconexão com o passado, pois Solange demonstra ter mais pressa do que nostalgia. Ela fala de uma consulta, acelera a saída e não parece disposta a relevar a conhecidíssima tendência da anfitriã de perder o horário dos compromissos. O filme não oferece possibilidades de mergulhos profundos, aliás, está bastante alicerçado na urgência do presente que conjura diversos fantasmas do passado a cada interação.
Nathália Tereza e Tomás von der Osten espremem Teresa numa imagem cuja razão de aspecto é 4:3, ou seja, praticamente um quadrado que limita o campo de visão do espectador e confere ao filme uma sensação de aprisionamento. Nas outras duas cenas envolvendo antigos colegas, na casa dos quais a protagonista deixou suas coisas que não couberam na mudança, Solange atinge momentos de tensão indicativos de que há repressões e recalques não ditos. Na casa da amiga relutante e um tanto tensa, ela se dá conta de que foi vítima de apropriação indébita. Sim, pois a mulher usurpou livros e outros itens que não lhe pertenciam, os incorporando como se fossem seus. Será que ela não contava com o retorno? É um tanto artificial o embate provocado pela diferença entre as memórias/percepções de uma e outra. A colega de contracena responde estranhamente de bate-pronto aos questionamentos de Solange sobre livros marcados com dedicatórias e blusas vermelhas de mangas compridas. Algo semelhante acontece quando Solange visita o ex-namorado do falecido com quem dividiu apartamento. Ao ser questionado sobre objetos que a protagonista deseja levar, o ator escancara que tem um texto previamente decorado, não reagindo de modo espontâneo. Assim, marcas cinematográficas ficam evidentes, deixas e outras dinâmicas cênicas visíveis comprometem a credibilidade desses dois instantes.
De um lado, é louvável que Solange não seja aquele tipo de filme meramente ilustrativo. Nathália Tereza e Tomás von der Osten evitam utilizar muitas explicações e justificativas, deixando pelo caminho migalhas incumbidas de atiçar a curiosidade do espectador. Os assuntos permanecem numa camada subentendida. A julgar por isso, o comportamento descritivo da câmera causa um paradoxo involuntário, gerando uma contradição linguística. Isso porque o dispositivo assume uma postura didática, ilustrando o percurso de Solange de um modo menos evocativo. Talvez seja uma estratégia para compensar as subtrações de informações e evitar uma obscuridade completa? Conjecturas à parte, fato é que a câmera parece sempre disposta a esclarecer o que está implícito nas palavras. Como no trecho em que Solange conversa desajeitadamente com um motoboy. Cada curva do texto é “compensada” com a contraditória abordagem descritiva da câmera. Isso fica evidente quando o benfeitor fala da caixa (símbolo das memórias desejadas e/ou indesejadas) e o dispositivo fica procurando o objeto para não o perder de vista. Por quê? Voltando a Solange, não há nenhum momento em que ela é tão “desarmada” como na hora em que faz a videochamada com seu atual namorado. Claro, pois ali Solange não é obrigada a negociar com esse passado deixado para trás, pois lida pura e simplesmente com o seu presente.
Nathália Tereza e Tomás von der Osten dão uma piscada de cumplicidade aos cinéfilos quando colocam Solange sentada com as solas dos pés visíveis sobre a mesa de jantar. O quadro reproduz um dos momentos icônicos de Uma Mulher Sob Influência (1974), filme de John Cassavetes, obra-prima também focada nas peculiaridades de uma solitária transitante. Como há poucos paralelos entre as histórias da mulher que volta em busca dos itens de sua memória e as da dona de casa estadunidense levada às raias da exaustão emocional por conta de suas conexões afetivas, podemos ler a simetria como uma bonita homenagem, mas sem grandes implicações dramáticas. Sol, como a protagonista é chamada pelos mais íntimos, talvez se revele de modo menos direto nos citados diálogos de exceção com os desconhecidos, vide as conversas com o motoboy e a vizinha chatíssima que não para de falar. Sem a autoridade que a intimidade lhe confere diante dos amigos, ela se vê completamente desprovida de instrumentos para lidar com as demandas dos outros. Tanto que é convencida a aceitar a carona inicialmente negada e certamente fica mais do que deveria à porta dando atenção à vizinha bisbilhoteira. Pena que os realizadores se contentam com pequenos indícios de personalidade e do passado felizmente pouco investigado. De toda maneira, é interessante acompanhar esse processo de reconexão.
Filme visto por ocasião do 8ª Cine Jardim, em outubro de 2024.
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