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Crítica


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Sinopse

Durante a Segunda Guerra Mundial, um acordo de cooperação entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos levou cerca de 60 mil nordestinos para a região amazônica para trabalhar na extração de látex destinado à indústria americana de armamentos. Metade deles morreu antes de voltar para casa e muitos outros ainda esperam o reconhecimento como “heróis da pátria” e a prometida aposentadoria equivalente a dos militares.

Crítica

Com Soldados da Borracha, o cineasta Wolney Oliveira confere visibilidade a uma passagem obscurecida da história brasileira. Mais que isso, lança luz sobre um povo ludibriado pelo discurso ardiloso do Estado que então precisava de mão de obra para barganhar politicamente com os Estados Unidos em plena Segunda Guerra. Durante o confronto de proporções praticamente globais, houve uma severa crise de abastecimento de borracha. O longa-metragem mostra, por meio de cinejornais estadunidenses, reportagens escritas e audiovisuais da época, que a escassez dessa matéria prima vital tendia a ser determinante para os rumos do embate com a Alemanha nazista e os demais países da coalizão do Eixo. Aproveitando-se dessa debilidade, Getúlio Vargas, que permanecia neutro para obter vantagens de ambos os lados, fez um acordo com o Tio Sam, oferecendo fornecimento massivo do que era raro em outras plagas. O filme expõe bem tais artimanhas.

Soldados da Borracha desenha um percurso sólido à compreensão dos meandros que influenciaram o alistamento/aliciamento de quase sessenta mil indivíduos, muitos deles encurralados pela seca nordestina, para enfrentar inúmeros percalços amazonenses, como a malária, os animais selvagens e a resistência indígena. Sua função insalubre foi essencial para derrotar os ímpetos do Terceiro Reich. São ouvidos historiadores, um biógrafo de Getúlio Vargas, mas, principalmente, os sobreviventes dessa jornada repleta de contratempos e sofrimento. O vasto material de arquivo é entrelaçado organicamente com os depoimentos, assim criando uma consistente narrativa que gradativamente adquire contornos melancólicos. O realizador sublinha a sordidez do plano estatal que, a fim de obter vantagens geopolíticas, condenou cidadãos fustigados pela miséria a um calvário caracterizado por doenças, falta de instalações adequadas, jornadas desumanas de trabalho, enfim, uma série de violações de direitos laborais e humanos, ali carimbados pelos mandatários.

O modo como Wolney articula os testemunhos acentua, primeiro, a tenacidade dos que resistiram à toda sorte de provações e, segundo, a brutal exploração que os extratores da látex sofreram nas mãos de capatazes inclinados a gerar espirais praticamente inescapáveis de dívidas. Confrontando os ditos com os documentos oficiais, como os contratos que revelam as promessas vazias que seduziram os alistados, o cineasta amplia a indignação que perpassa o longa-metragem, conferindo-lhe um tom pesaroso de denúncia. Esse choque com o Estado ganha novos desdobramentos quando, próximo ao fim, são apresentadas as moções na Câmara dos Deputados pleiteando indenizações aos seringueiros, bem como a equiparação dos mesmos aos militares que serviram a pátria nas Forças Expedicionárias Brasileiras. A discussão passa longe de ser apenas o registro de uma tentativa, pois abarca, principalmente, a insatisfação quanto à vitória que teve gosto amargo de derrota.

Soldados da Borracha é um documento importante, sobretudo, por exumar episódios deliberadamente apagados, a respeito dos quais provavelmente nada se fala nas salas de aula. Todavia, o filme não é somente relevante em virtude desse movimento bem-vindo de resgate, mas, de forma equivalente, pela habilidade ao alinhavar componentes a fim de consolidar uma manifestação ampla, multifacetada e engenhosa do ponto de vista da construção cinematográfica. Ao atrelar o martírio dos soldados da borracha, do recrutamento à luta atual por reconhecimento e reparação, ao comportamento omisso do governo com relação aos querelantes, Wolney Oliveira discorre um pouco sobre a contemporaneidade, ou, melhor dizendo,  acessa a tendência dos detentores do poder a vampirizar os esforços da população, principalmente a vulnerável, em algum sentido. Ao revolver criativa e incisivamente o outrora em busca da verdade, ou, pelo menos, de aspectos que nos aproximem dela com veemência, o documentário vai além de meramente informar, pois convida à reflexão.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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