float(4) float(1) float(4)

Crítica


3

Leitores


1 voto 8

Onde Assistir

Sinopse

Prestes a ser desmascarada como trapaceira, Fanni se desfaz de sua identidade e passa a perambular nos inóspitos alpes, encontrando paradeiro numa fazenda repleta de animais e gente estagnada.

Crítica

Fanni (Johanna Orsini-Rosenberg) não paga o aluguel há cerca de três anos e pratica frequentes trambiques, estando na lista de procurados pela polícia por sua atuação fraudulenta em várias outras áreas. Ela compra um vestido caro na loja proibitiva até para o cidadão médio da Suíça, mas descarta a peça tão logo retorne à rua. Esse comportamento, no mínimo, singular da protagonista de Soldados Jeannette aparentemente pressupõe um mistério a ser desvendado. Afinal de contas, por que a mulher prefere empilhar problemas que poderiam ser resolvidos com o dinheiro adiante queimado sem motivo aparente? É mencionada uma soma enorme que teria sido desviada, mas em certo instante o plano-detalhe de um caixa eletrônico mostra a recusa de um saque simples de 400 euros por falta de fundos. Pela frequência em cena, o dinheiro é um elemento vital, embora não haja um subtexto sustentando, por exemplo, o que poderia ser uma sátira agridoce sobre o desprendimento de alguém que pretende viver alheia à onipotência monetária. O começo do filme é estranho e assim permanece.

A primeira metade de Soldados Jeannette é um enigma crescente, sem promessas imediatas de resolução ou respostas. Johanna Orsini-Rosenberg é o grande destaque, justamente pela forma como constrói uma personagem praticamente impermeável a sentenças e definições. Como temos pouquíssimo acesso ao passado de Fanni, sobressai a dúvida, a incerteza a respeito do que a motiva. Se é que alguma coisa a mobiliza, haja visto o semblante quase engessado e uma sintomática falta de interesse em boa parte das engrenagens que cotidianamente alavancam a sociedade. Desse jeito, sobra uma sucessão de episódios peculiares que têm dificuldades para se concatenarem com o intuito de delinear qualquer lógica. Repreendida pelo senhorio em virtude da inadimplência enorme, Fanni sai despreocupadamente para fazer sua aula de artes marciais (?) e quando volta a promessa do proprietário está cumprida. Ela parece alheia à básica relação entre escolhas e consequências, pois soa descrente diante da probabilidade de ter a fechadura trocada ao regressar para casa.

Um dispositivo recorrente nessa realização do cineasta Daniel Hoesl (também responsável pelo roteiro) é o supetão. Não há fluidez na justaposição das cenas. Prevalecem os sobressaltos que jogam, por exemplo, da conversa em que uma amiga da protagonista lhe oferece ajuda ao movimento abrupto da desabrigada numa academia de ginástica. Esse procedimento da montagem a cargo de Natalie Schwager tende a causar uma exasperação, sobretudo porque as elipses suprimem dados intermediários que poderiam conferir uma noção melhor de quem é Fanni e porque ela age de formas tão inescrutáveis. Por um lado, Soldados Jeannette não demonstra preocupação com a ilustração de um painel, se distanciando do tipo de cinema essencialmente explicativo, isso fundamentalmente pelo modo como articula o fiapo de trama apresentado. Por outro, há uma inclinação quase contraditória pela descrição pormenorizada dos gestos contidos em cada tomada. O resultado é uma bagunça que, simultaneamente, refuta no geral as elucidações determinantes, mas o fazendo a partir de pequenos fragmentos bem explicadinhos. Há uma tentativa de humor, também malsucedida na essência.

Quando Fanni vai aos Alpes trabalhar numa fazenda (do nada), Anna (Christina Reichsthaler) se torna uma espécie de coprotagonista de Soldados Jeannette. A jovem campesina deseja sair daquele fim de mundo, mas nem isso é trabalhado ao ponto de gerar engajamento. Daniel Hoesl segue apostando firmemente na narrativa porosa, avessa a pegar o espectador pela mão e conduzi-lo por um trajeto inequívoco. A intenção é bem-vinda, indubitavelmente, mas faltam a ele as habilidades para fazer de seu longa-metragem uma jornada capaz de subverter as curvas dramáticas tradicionais e, talvez, manifestar no aspecto formal a sua potência. Trocando em miúdos, o cineasta não oferece meios suficientes para nos embarcar na viagem nonsense sem que fiquemos a todo o instante sentindo falta das respostas convencionais. Ele conjura um mistério, inicialmente chamando atenção à figura singular e bem delineada na telona por Johanna Orsini-Rosenberg, mas não demora a permitir que todo conjunto descambe para uma desinteressante caminhada entediante e bastante esquecível.


Filme visto online na edição comemorativa do Festival de Balneário Camboriú, em abril de 2021.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *