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Sinopse

Tim é parte de uma força tarefa norte-americana que investiga e captura pedófilos. Inquieto pela sensação de que não está salvando as crianças já sequestradas, ele parte à América do Sul em busca de algo que faça a diferença.

Crítica

O tema de Som da Liberdade é muito pertinente. Ele aborda a questão do tráfico humano, mais precisamente o sequestro de crianças vendidas internacionalmente como escravas sexuais. Aliás, o único mérito do longa-metragem é tornar visível essa questão tantas vezes negligenciada em meio a outras pautas com espaço maior nas mídias convencionais e nas discussões em redes sociais. E como ele faz isso? No geral, colocando em primeiro lugar o heroísmo de um norte-americano conservador e em segunda posição a denúncia da estrutura perversa que destrói a infância. Enquanto sobem os créditos finais, o seu astro principal, Jim Caviezel, afirma uma coisa simplesmente inverídica: que a produção não é sobre o homem da lei que faz das tripas coração para resgatar pessoas indefesas das mãos de traficantes inescrupulosos, mas a respeito das crianças que precisam ser protegidas. A afirmação feita de modo piegas e choroso é incorreta, pois estamos diante de uma clara ode ao provedor clássico, que sempre prioriza a ênfase da bondade e da abnegação de Tim Ballard (Caviezel), membro da força tarefa norte-americana encarregada de prender pedófilos. Questionado por um colega sobre as crianças que libertou, esse sujeito tem uma daquelas epifanias convenientes, se ilumina e entende que precisa dedicar seus esforços para resgatar os inocentes. Custe o que custar, como é próprio aos super-heróis.

Um dos elementos que escancaram a construção de Tim como herói é justamente a abnegação. Como se atendesse a um chamado divino, ele a larga a esposa e os vários filhos para ir à América do Sul com o intuito de desbaratar a estrutura do tráfico humano, assumindo um papel conhecido comumente como white savior. Traduzindo para o bem e velho em português: branco salvador. O longa dirigido por Alejandro Monteverde reaproveita essa figura clichê tão utilizada anteriormente pelo cinema, a do forasteiro “bem intencionado” com traços caucasianos que se torna fundamental para salvar pessoas ou comunidades em perigo, bem como integrantes de minorias em situação de vulnerabilidade. Tim é desenhado como um homem obstinado, chefe da família tradicional formada pela prole extensa e que tem na esposa uma coadjuvante satisfeita com o seu papel secundário de incentivadora sem personalidade. Toda vez que a atriz vencedora de um Oscar Mira Sorvino aparece em cena, como essa esposa do protagonista, é para mostrar apoio irrestrito à missão que Tim assume como se fosse enviado divino para corrigir problemas do mundo. Katherine (Sorvino) não tem subjetividade, existindo apenas como torcedora submissa às vontades do marido aventureiro enobrecido pela missão. Não à toa Som da Liberdade vem sendo hasteado nos Estados Unidos como bandeira da (extrema) direita.

Tratando as vítimas como criaturas despersonalizadas que existem somente enquanto exemplos do sofrimento que esse branco salvador precisa extirpar da Terra, Som da Liberdade defende com unhas e dentes o heroísmo do cristão, homem de família e sensibilizado diante dos crimes cometidos contra a infância. É mais ou menos o tipo de discurso proferido no Brasil para alavancar a carreira política de Jair Bolsonaro e nos Estados Unidos a fim de eleger Donald Trump à presidência dos Estados Unidos – lembram da mamadeira de piroca, fake news que era uma mentira eleitoreira disfarçada de preocupação com a infância? Na superfície, há a diligência com os pequenos, mas na essência existe uma dificuldade de encarar a complexidade dos cenários e, por consequência, surge a aderência irrestrita a discursos simplistas. Tim utiliza como bordão a ideia de que as “criaturas de Deus não estão à venda” e, em outro momento da trama, um ex-soldado do cartel de Cali, na Colômbia, também evoca Deus para justificar a cruzada contra os pedófilos. Portanto, é fundamental percebermos qual o perfil de herói está sendo construído e, na mesma toada, qual o perfil das vítimas. O herói é um norte-americano loiro e que assume a tarefa de destruir o mal. As vítimas são os desvalidos do Terceiro Mundo que precisariam de intromissão da nação imperialista. Guardadas todas as devidas proporções, trata-se de um argumento semelhante ao utilizado para invadir países sob o pretexto da ajuda humanitária.

Não bastasse a eleição simplista de protetores e protegidos, Som da Liberdade reproduz uma série de estereótipos sobre países latino-americanos, sendo o principal deles a propensão a crimes hediondos e a urbanidade marcada pela pobreza quase extrema. Ele segue a premissa de enxergar países subdesenvolvidos como a parte perigosa do mundo. As instalações norte-americanas são limpas e impecáveis, já as da Colômbia e de Honduras são caracterizadas pela degradação visual alusiva à ideia de precariedade material/moral – apenas um cenário colombiano é paradisíaco, única alternativa possível no filme à pobreza abundante nas perambulações de Tim. Som da Liberdade é um filme asfixiantemente masculino. As poucas mulheres em cena são restritas a papeis que não as permitem se expressar para além das funções a desempenhar: a esposa norte-americana devotada que diz amém ao marido; a ex-miss Colômbia que lucra com o sofrimento alheio; a menina que caiu nas mãos de traficantes ao convencer o pai de que precisava participar de um teste de talentos; e a ausência materna aos irmãos levados pelos malfeitores. Com uma trilha sonora melosa, manipuladora e onipresente, o filme é inimigo do silêncio e das nuances, camuflando o constante elogio a brancos salvadores, tementes e conservadores numa trama apelativa que reivindica ser encarada como humanitária.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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