Sinopse
Robson é enviado para morar com a avó na capital depois de apanhar do pai na pequena Luisburgo. Acompanhado de seu irmão mais novo, ele vai descobrir gradativamente como a sua identidade é importante para os demais.
Crítica
O Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo e um dos que mais registra outros tipos de violência contra pessoas da comunidade LGBTQIAPN+. Sou Amor começa justamente registrando a brutalidade aplicada ao corpo homossexual e negro de Robson (FLIP), ao ponto de o obrigar a sair do interior de Minas Gerais e ir morar com a avó, Dalva (Rejane Faria), e o irmão mais novo, Marcelo (Juan Queiroz), na capital Belo Horizonte. Robson não tem saída a não ser o êxodo em busca de uma terra que o trate com menos desumanidade. No entanto, um dos motores dramáticos desse longa-metragem selecionado ao 33º Cine Ceará é a existência de uma agressividade vinda também de dentro, mais especificamente desse núcleo familiar. Robson carrega uma carta em que a mãe trata a sua orientação sexual como uma doença passível de ser curada, além das marcas no rosto da surra que o pai lhe deu. Robson ainda precisa lidar com a homofobia do irmão que repete o comportamento ignorante e brutal dos pais ao negar a sua subjetividade. Robson está tentando descobrir coisas, inclusive, sobre a sua identidade de gênero. André Amparo e Cris Azzi optam por uma abordagem sofrida, na qual o protagonista está quase sempre com o semblante marcado pela homofobia e/ou chorando as suas dores. Os realizadores insistem no corpo negro castigado pela vida, fazendo de sua via crúcis um exemplo.
Dentro da representação das questões inerentes à comunidade LGBTQIAPN+ nos cinemas, há quem considere um tanto anacrônica essa abordagem trágica, em que a ênfase permanece durante tempo demais na dor. Há algumas décadas era comum, por exemplo, que filmes protagonizados por personagens gays acabassem invariavelmente de modo triste, com a morte de alguém para sensibilizar plateias. Sou Amor enxerga Robson como um sofredor, ressaltando a sua solidão mesmo ao encontrar uma bem-vinda rede de apoio, reiterando essa ideia de que o mundo heteronormativo quer expulsá-lo a todo custo. Mal chega a Belo Horizonte, ele é vítima da homofobia na escola, enfrenta a resistência do menino que reluta em beijá-lo, convive com os preconceitos do irmão, se sente desamparado ao buscar informações sobre tratamento hormonal, sofre pela simples possibilidade de o pai agressor passar uns tempos na capital, etc. Os instantes de felicidade, que o empoderam pela fraternidade e acolhimento, são bem menos numerosos do que os episódios angustiantes. Provavelmente, a ideia de André Amparo e Cris Azzi era justamente sublinhar essa sensação de inquietude por não se encaixar nos padrões de uma comunidade agressiva com aqueles que dela destoam. No entanto, para isso, será que realmente era vital reiterar tanto esse corpo esfacelado, sôfrego e constantemente torturado?
Há um caráter episódico em Sou Amor, filme feito de retalhos que mais parecem esquetes, marcado constantemente por elipses (pequenos saltos temporais que carregam consigo omissões intencionais de informações perceptíveis pelo contexto) para pular de uma historieta a outra com rapidez. E esse é um dos grandes problemas dessa produção que vai costurando enunciados e, por falta de tempo para desenvolver certas complexidades, acaba prejudicando as curvas dramáticas dos personagens, encarando determinados assuntos de modo ligeiro e insuficiente. Por exemplo, a resistência de Marcelo diante da liberdade sexual do irmão Robson. A homofobia do caçula é um traço fundamental de sua personalidade, algo enraizado que não desaparecerá de uma hora para outra, como num passe de mágica. Tratado basicamente como outro obstáculo familiar, esse menino tipificado vai mudando repentinamente de opinião sem plausibilidade. Numa cena ele é agressivo com Robson ao ponto de atentar contra o corpo do irmão com atitudes indicativas de sua homofobia. Duas cenas mais tarde ele está sentado diante do primogênito com leves traços residuais de resistência, perguntando praticamente de peito aberto sobre a sua sexualidade. Ao avançar apressadamente pela cronologia da existência de Robson e companhia em Belo Horizonte, o filme enfraquece nuances emocionais/psicológicas.
Provavelmente, essa sensação episódica se explique pelo fato de Sou Amor ser derivado de uma série de TV veiculada entre 2018 e 2019. André Amparo e Cris Azzi decidem manter essa característica dos seriados televisivos, a de que cada episódio se refere a um assunto (ou se detém num personagem), buscando ao longo da temporada a instauração de um painel. Porém, uma vez transposta essa estrutura para um filme de longa-metragem, a fragmentação cobra um preço alto: dilui os dramas em meio a uma progressão apressada que sacrifica sutilezas em prol do volume de informações e situações indicativas. A rede de apoio de Robson, bem como a queda em si de Marcelo, são componentes trabalhados de modo displicente, ao ponto de perderem força dramática por falta de fôlego. A dupla de realizadores quer exemplificar muitas coisas em pouco tempo, o que compromete seriamente o impacto dos bem-vindos manifestos da trama. O resultado é uma frouxidão narrativa que transforma os assuntos importantes contidos na trajetória de Robson em breves premissas que não ganham o desenvolvimento merecido. De toda forma, FLIP é uma presença poderosa em cena, alguém que dá conta do recado (com excelência) ao representar a pessoa afetada pela perversidade de um mundo que faz de tudo para apagar a sua existência gay, negra e questionadora das identidades de gênero.
Filme visto no 33º Cine Ceará, em novembro de 2023.
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